A Folha online publicou hoje um artigo sobre um livro novo de Zé Miguel Wisnik, um ensaio sobre o conto “Um Homem Célebre” de Machado de Assis.
Eu já tinha lido o conto e achei interessante a idéia da análise — histórico-etnomusicológica, sim, senhor — da peça de Machado. A idéia é muito boa porque Machado é um maravilhoso comentarista do seu tempo. E embora esta seja uma obra de ficção, é também um relato detalhado de uma prática musical importante daquela época.
Então li o conto de novo porque, até onde me lembrava, não tinha entendido a história nos mesmos termos que Wisnik. Pelo menos no trecho da introdução que a Folha pôs online aqui.
Eu nem li o livro de Wisnik; só esse trecho que a folha publicou. Então é possível que o autor venha a esclarecer (ou retificar) o que escreve nesse início e que eu achei particularmente problemático:
Já a impossibilidade de criar sonatas, sinfonias e réquiens, em Pestana, não se resume na incapacidade de compor, mas corresponde a um deslocamento involuntário do impulso criativo em direção à língua comum das polcas, com espantosa força própria, o que faz do compositor não só uma individualidade em crise mas um índice gritante da cultura, um sinal da vida coletiva, um sintoma exemplar de processos que o conto põe em jogo com grande alcance analítico, e que são muito mais complexos do que a leveza dançante da narrativa faz supor de imediato.
Eu acho que, pelo contrário, a impossibilidade de Pestana de criar sonatas resume-se sim à sua incapacidade de escrever música numa linguagem mais sofisticada. Longe de ser um deslocamento involuntário, é o universo musical que ele conhece e habita. Embora ele seja um compositor bem sucedido de polcas, não consegue compor réquiens, sonatas e sinfonias, que são gêneros que exigem outro grau de competência.
E não consigo ver como Machado o coloca como “sinal da vida coletiva” se ele é um dos poucos privilegiados que têm acesso a estes dois mundos (o popular e o erudito) e é, ao mesmo tempo, o principal responsável pela disseminação do gênero musical que tanto despreza. Ninguém mais pode fazer o que ele faz. Tanto é verdade que ele é um tipo de celebridade, grandemente admirado pela sua obra. As polcas, das quais ele passa o conto inteiro tentando escapar, saem — com incrível facilidade — dos seus próprios dedos e vão alimentar o mercado de venda de partituras.
Outro trecho:
Se somados a essa ilusão os interesses do mercado, que o conto satiriza com precisão hilariante, e que começavam a explorar, no fim do século 19, o futuroso filão da música popular urbana por meio do comércio de partituras, temos, mais refinada, embora ainda insuficiente, uma leitura que identifica no conto uma crítica pioneira da cultura de massas, e pela qual restaria ao artista o papel do peão impotente entre a alienação de uma arte que não descreve o meio em que atua e um mercado que instrumentaliza seus esforços vãos para os fins do lucro.
O viés Adorniano não podia faltar, claro (senão não é academia). Mas eu realmente não consigo ver essa crítica como um aspecto tão crucial do conto. Está lá, sim, mas Pestana não me parece tão impotente assim. Observe que ele fica dois anos sem compor. Volta por necessidade, claro. Mas o representante do mercado parece lhe oferecer condições tão confortáveis de trabalho. E, de novo, vejo sua submissão aos pedidos do editor como a única alternativa que restou a um músico que não tem talento para compor numa linguagem musical mais exigente.
Enfim, análises etnomusicológicas à parte, o conto é uma obra-prima. O que li nessa introdução me deixou curiosa, apesar de não fazer a mesma leitura da história.
E posso sugerir um livro muito bom que trata da música no Rio de Janeiro nesse período? Trata-se de “Music in Imperial Rio de Janeiro: European Culture in a Tropical Milieu” de Cristina Magaldi, que eu não sei se tem tradução para o português.
Termino esse comentário meu sobre o livro de Wisnik — que espero pedir que alguém me mande daí — com um trecho do conto. Que é de uma beleza única, marca desse brasileiro que eu adoro:
Poucos dias depois — uma clara e fresca manhã de maio de 1876 — eram seis horas, Pestana sentiu nos dedos um frêmito particular e conhecido. Ergueu-se devagarinho, para não acordar Maria, que tossira toda a noite, e agora dormia profundamente. Foi para a sala dos retratos, abriu o piano, e, o mais surdamente que pôde, extraiu uma polca. Fê-la publicar com um pseudônimo; nos dois meses seguintes compôs e publicou mais duas. Maria não soube nada; ia tossindo e morrendo, até que expirou, uma noite, nos braços do marido, apavorado e desesperado.
Era noite de Natal. A dor do Pestana teve um acréscimo, porque na vizinhança havia um baile, em que se tocaram várias de suas melhores polcas. Já o baile era duro de sofrer; as suas composições davam-lhe um ar de ironia e perversidade. Ele sentia a cadência dos passos, adivinhava os movimentos, porventura lúbricos, a que obrigava alguma daquelas composições: tudo isso ao pé do cadáver pálido, um molho de ossos, estendido na cama… Todas as horas da noite passaram assim, vagarosas ou rápidas, úmidas de lágrimas e de suor, de águas-da-colônia e de fg(213,’Labarraque,’)Labarraque, saltando sem parar, como ao som da polca de um grande Pestana invisível.
Enterrada a mulher, o viúvo teve uma única preocupação: deixar a música, depois de compor um Réquiem, que faria executar no primeiro aniversário da morte de Maria. Escolheria outro emprego, escrevente, carteiro, mascate, qualquer coisa que lhe fizesse esquecer a arte assassina e surda.
Começou a obra; empregou tudo, arrojo, paciência, meditação, e até os caprichos do acaso, como fizera outrora, imitando Mozart. Releu e estudou o Réquiem deste autor. Passaram-se semanas e meses. A obra, célere a princípio, afrouxou o andar. Pestana tinha altos e baixos. Ora achava-a incompleta, não lhe sentia a alma sacra, nem idéia, nem inspiração, nem método; ora elevava-se-lhe o coração e trabalhava com vigor. Oito meses, nove, dez, onze, e o Réquiem não estava concluído. Redobrou de esforços; esqueceu lições e amizades. Tinha refeito muitas vezes a obra; mas agora queria concluí-la, fosse como fosse. Quinze dias, oito, cinco… A aurora do aniversário veio achá-lo trabalhando.
Contentou-se da missa rezada e simples, para ele só. Não se pode dizer se todas as lágrimas que lhe vieram sorrateiramente aos olhos, foram do marido, ou se algumas eram do compositor. Certo é que nunca mais tornou ao Réquiem.