uma resolução musical

8 01 2009

Resolução de ano novo é mais ou menos como fazer um desejo soprando as velinhas do bolo de aniversário: se contar pra outra pessoa, a coisa desanda. Mas mais honesto que culpar a superstição é admitir que é por negligência nossa que boa parte delas sai do papel para uma existência curta e atropelada.

“Como é que fui pensar que daria conta de mais esse compromisso?”, admitimos depois de uma semana. E então  o novo plano logo murcha para cair de vez no esquecimento. Quer dizer, até o ano que vem. Ele vai voltar à vida lá pelo fim de dezembro quando, com o novo ano, você se sentir capaz de abraçar o mundo mais uma vez.

Mas eu fiquei empolgada com uma ideia que tive pra este ano e queria te contar.

Como é sempre o caso, minha resolução é mais do que eu dou conta, que é onde está a graça da coisa. O plano, no entanto, é bem simples: estou lendo o livro de Tom Moon “1000 Recordings to Hear Before You Die” como uma forma de ampliar meu “menu musical”. Cada dia baixo um ou dois álbuns da lista e ouço com toda atenção.

A idéia parece mais fácil do que realmente é porque estou me propondo a parar o que quer que esteja fazendo e ouvir a música. E estou sendo obrigada a ouvir coisas para as quais nunca dei bola e outras das quais sempre fugi. Agora dá pra entender de onde veio o AC/DC do outro post, não?

E vou te dizer, com uma ponta de orgulho, que estou me descobrindo mais tolerante do que imaginava. Claro, com esses anos todos ouvindo e lendo sobre música, já ouvi muita coisa que não gostava; ouvir o que não me agrada é meio que rotina. Mas ouvia porque tinha que escrever a respeito e pronto.

Agora é diferente. Estou tentando deixar de lado meu nariz empinado e me abrindo à música. E estou surpresa porque descobri algumas coisas novas que gostei muito.

Claro, trata-se de uma lista bem escolhida e a maioria do que está lá tem seu mérito. Lembre-se que é a escolha de um moribundo; o autor vende a ideia de que realmente vale a pena ouvir tudo isso antes de ir embora. Coisa séria, tá pensando o quê?

Então escuto cada álbum  com respeito, com a garantia do autor, que todos têm razões especialíssimas para entrar na lista, enquanto vários milhares ficaram de fora.

Sim, sim, há um bocado de pretensão por trás da idéia de se escrever um livro com um título – e objetivo – pomposo desses. Mas acho que pode funcionar se você não levar a coisa tão a sério. (Agora me diz se não é engraçado ouvir isso de uma etnomusicóloga).

Aliás, como não poderia ser diferente, já saquei do meu estetoscópio etnomusicológico (sim, existe esse treco) e me pus a auscultar minhas reais intenções pra embarcar num projeto desses. O que estou fazendo?

Pra ser bem sincera, é uma coisa bem despretensiosa. Estou mesmo a fim de conhecer coisas novas. E o livro ajuda a organizar as coisas. Por mim mesma, acabo sempre voltando às coisas que mais gosto; estava um pouco enjoada.

Cheguei também à conclusão que o livro meio que assumiu a função da obsoleta capinha do CD com informações sobre a gravação. Embora seja um pouco diferente porque inclui também uma ou outra fofoquinha sobre os músicos, além dos tracks preferidos do autor. Ele também sugere outros álbuns que poderiam te agradar se você gostou do que ouviu.

A Wikipédia tem muito do que está no livro. Mas, veja bem, é diferente “folhear” a informação. Todo mundo sabe que por mais que o nosso cérebro passe batido por uma informação que lê online, há grande chance de que não faça o mesmo se ler a mesmíssima frase num livro impresso.

Ler os comentários do autor não deixa também de ser uma maneira de “possuir” a música, já que um arquivo no laptop está longe de me fazer sentir que a música me pertence. Você também tem essa sensação? E ouvir o álbum todo também tem um pouco disso: ouvindo, me aproprio da música. “Pronto, acabei”, digo no final. E decido se vou ouvir de novo coisas daquele tipo ou se já deu. Em outras palavras, outra ilusãozinha minha meu poder sobre a música.

Mesmo assim, só leio os comentários de Moon depois de ouvir: não precisamos que alguém nos diga do que gostar, não é? Mas a idéia dele nem parece ser essa.

Nem se trata de “estudar” a música. Mas expandir meu universo musical, seja pelo maior contato com coisas que não conheço direito ou me aprofundando em conhecer aquilo que eu só ouvi de raspão.

Enfim, uma brincadeira leve – pelo menos, até os compromissos acadêmicos voltarem com tudo – e divertida. Vamos ver se consigo levar a coisa adiante. Te falo.





AC/DC, Provérbios 22:6 e uma confissão

6 01 2009

“Ensina a criança no caminho em que deve andar e quando for velho não se desviará dele”

Provérbios 22: 6

Escrevo ao som de “Hell’s Bells” de AC/DC. Eu, que venho de uma família evangélica, cujo pai proibia os filhos, não só de ouvir, mas de ter em casa, qualquer som que não falasse de Jesus. Então, faça uma ideia  de como isso é libertador.

Na verdade, sempre achei irônico que eu tenha escolhido por profissão a musicologia, que me obriga a escutar de tudo. Quem sabe essa escolha não foi um ato inconsciente de rebeldia?

Voltando à minha (des)educação musical, me lembro de ter lido na adolescência um artigo onde o autor alertava – horrorizado e horrorizando – para o poder destrutivo da música de AC/DC. Analisou a letra de “Hell’s Bells”, levou tudo ao pé da letra e disse que aquilo tinha nascido no inferno, uma inspiração do diabo, da qual deveríamos manter distância.

É grande o poder de convencimento das coisas que nos falam quando ainda somos crianças. Terá sido esse o motivo porque nunca parei pra ouvir AC/DC? Ouvir, ouvi. Mas nunca por vontade própria.

“Não gosto”, sempre repeti. Agora, estou achando mesmo é que me convenci que meu gosto musical não comporta AC/DC. Que a música é simples demais e destoa da minha inclinação pelas harmonias requintadas do jazz , pelas melodias modais de Bártok ou de alguma outra coisa complicada que eu achei em Brahms, Beethoven, ou qualquer coisa que não seja hard rock.

Ou talvez essa seja uma mentira conveniente que eu venha contando pra mim mesma durante tantos anos. A verdade é que ando mantendo distância de hard rock porque desde bem pequena ouço que é musica do capeta.

Nossa identidade musical é definida mais pelo que detestamos do que pelo que gostamos de ouvir. E não gostar de rock é o que eu escolhi pra me definir, um tipo de “avatar musical”.

E olha, admito que arrastei o arquivo para o iTunes com um tiquinho de desconforto. Assim, um poucochinho, ainda que irrelevante, de hesitação.

Mas meu desassossego durou pouco. Parei tudo o que estava fazendo e ouvi o álbum todo, prestando muita atenção em cada detalhe. Em alguns momentos, me remexi, impaciente, na cadeira com as letras na voz esganiçada e sensacional de Brian Johnson.

E para desgosto do meu pai, que nem faz ideia dos caminhos musicais tortuosos que eu ando percorrendo, gostei muito do álbum todo.

Não é que a guitarra de Angus Young é uma coisa espantosa? Ou eu deveria dizer “diabolicamente” espantosa?

Ou seja, acho que essa minha experiência de hoje é um exemplo de que sempre é possível encontrar a luz (ou se afastar dela, na opinião de muitos).

Agora tente adivinhar de qual música eu gostei mais.





“a piece of music”

5 01 2009

Gosto muito da expressão “a piece of music” do inglês. Sem equivalente no português porque na língua de Shakespeare, “piece” também significa “pedaço”.

Imagine um “pedaço de música”, uma parte que foi cortada de um todo que nós não somos capazes de compreender. Um pedaço que se junta a outro pedaço para adquirir sentido. Sentido que nunca é obtido completamente, mas que fica mais manejável quando estes pedaços são relacionados a um contexto maior.

Pense em música como algo grande, atemporal, que, vez ou outra, alguém de talento consegue dar forma, fechar numa estrutura com início, meio e fim no que convencionamos chamar de canção, sinfonia, movimento, ópera, vinheta, sonata, cantiga de roda ou outra coisa.

Aquela canção maravilhosa que te emociona e faz você pensar na beleza das coisas não encerra a definição de música. É só um naco dessa experiência tão maior e tão difícil de definir, que chamamos de “curtir” música.

Essa idéia também me deixa feliz porque me faz pensar que o que eu vejo como o melhor da música é, na verdade, somente uma fração, um quinhãozinho do que existe pra ser experimentado e que há uma infinidade de pedaços ainda por serem descobertos.

Não é esta uma visão mais humilde da nossa relação com a música? Eu acho.





entrevista com Simon Frith (iii)

25 11 2008

(continuação da minha tradução da entrevista de Simon Frith, etnomusicólogo e crítico de rock, à revista online “Perfect Sound Forever”. Agora falando sobre rádio na Inglaterra e a criação de comunidades musicais e o fracasso de vendas de grandes estrelas da música. Diferentemente das outras, não comentei as respostas: este é um assunto que eu gostaria de saber mais. A primeira parte dessa entrevista está aqui. A segunda aqui).

PSF: E sobre a importância do rádio e o modo como ele cria comunidades? Isso ainda é possível apesar da integração que tem ocorrido no Clear Channel? Nos EU, DJs estão fazendo o mesmo show que é transmitido em diferentes mercados.

Frith: Tenho certeza que você está certo sobre os EU e eu não estive lá por tempo o suficiente para ouvir rádio e saber. Na Inglaterra sempre houve uma rádio nacional, que é diferente dos EU, claro. Há programas especializados à noite que meio que funcionam como aglutinadores para certas comunidades (especialmente para algumas dance scenes). Mas eu acho que o único lugar onde a rádio é realmente importante na Inglaterra é a rádio pirata. É muito mais local e eles transmitem para grupos étnicos específicos ou grupos da área com preferências específicas. Também ajuda a trazer um quê de ilegalidade e também um senso de comunidade musical.

PSF: Quanto desta cultura ainda é difundida na Inglaterra?
Frith: Depende muito do local. Há várias estações piratas em Londres e em grandes cidades como Manchester. Não muitas aqui na Escócia. Nossas rádios são diferentes das suas especialmente com relação à rádio comercial. Eu acho que a BBC, tanto local quanto nacionalmente, ainda tem programas especializados que têm um público bem especializado e que ainda são importantes para as pessoas, especialmente para aqueles que estão fora dos centros metropolitanos. Nestes lugares tem-se a impressão de que não se faz parte do que está acontecendo na cidade.

(…)

PSF: Você afirmou que gravações são feitas para a mídia a fim de serem vendidos para o público. Se este é o caso, porque o índice de fracasso é tão grande?

Frith: Uma pergunta interessante seria: “Se eles não investissem tão pesadamente em mídia, o índice de fracasso seria tão grande?” Provavelmente tem a ver com o fato de a indústria fonográfica ser tão grande e também porque há pessoas de todos os tipos fazendo coisas diferentes. Mas eu acho que o que é interessante nisso é o índice de fracasso de pessoas que são as grandes estrelas. Nestes últimos 12 meses, por exemplo, houve o caso de Mariah Carey. Apesar de todo esse enorme impulso, mostra que este tipo de coisa não necessariamente traz resultado. Não mais do que traria se ela fosse uma desconhecida e não houvesse nenhum grande investimento. Então, eu acho que ainda há um certo grau de variabilidade onde os consumidores não podem ser manipulados com total eficiência.

PSF: Como você explica trabalhos que vendem bem sem contar com muito elogio da mídia como Britney Spears ou N’Sync?

Frith: Eu acho que isto confirma o fato de que críticos não são necessariamente bons para vender coisas. Estes tipos de produções nunca alcançam o público via críticos. Ninguém correu pra ver o que a Rolling Stone pensou de Britney Spears antes de comprar o álbum ou mesmo o dos Monkees. O mundo pop, na verdade, não trabalha desse jeito com os críticos. A pergunta interessante a fazer é “há mundos que funcionam através dos críticos”? No geral, provavelmente a resposta é não. Num exemplo famoso, Led Zeppelin tornou-se enorme apesar da Rolling Stone ter detonado com seus álbuns.

(…)

PSF: Você mencionou que o modelo “gate-keeper” (onde algumas estações ou diretores de programação permitem que certos lançamentos alcancem o mainstream) está obsoleto. Então por que alguns selos indie conseguem vender mais que selos das grandes gravadoras?

Frith: Obviamente eles conseguiram acesso e portanto, os gatekeepers influíram no sentido de deixá-los passar e também segurar outras coisas. Pode ser que em alguns gêneros ainda haja gatekeepers importantes, especialmente na área indie, isso em termos de críticos ou estações de rádio específicas ou lojas específicas. Mas minha intuição me diz que se eles realmente fossem bons… O exemplo principal seria o Nirvana e como eles conseguiram vender, de algumas maneiras, mais que a música corporativa. Eu desconfio que o que aconteceu nesse caso foi que a MTV teve um efeito mais significativo, no sentido que eles são um gatekeeper significativo. Mas eu tenho certeza que há outras coisas acontecendo com críticas independentes daquelas feitas pela MTV ou outros tipos de acordos sendo feitos pelas gravadoras ou grupos.





história e verdade

21 11 2008

Acabei de ler no livro do Taruskin:

“Getting its history wrong is part of being a nation”. (do historiador Ernest Renan)

Isto com certeza se aplica também à história musical de um país. E explica parte do post anterior.





música e rótulos

18 11 2008

It’s an obvious fact that the world is teeming with different kinds of music: traditional, folk, classical, jazz, rock, pop, world, just to name a few. This has always been the case, but modern communications and sound reproduction technology have made musical pluralism part of everyday life. (You can hear this every time you walk through a shopping mall.) And yet, the ways we think about music don’t reflect this. Each type of music comes with its own way of thinking about music, as if it were the only way of thinking about music (and the only music to think about). In particular, the way of thinking about music that is built into schools and universities—and most books about music, for that matter—reflects the way music was in nineteenth-century Europe rather than the way it is today, anywhere. The result is a kind of credibility gap between music and how we think about it.

do livro “Music: a Very Short Introduction” de Nicholas Cook,

“Cada tipo de música traz consigo uma maneira própria de se pensar sobre música, como se esta fosse a única maneira de se pensar sobre música (e esta, a única música a ser examinada)”.

E traz também um modo peculiar de escuta. E também um jeito de se conversar sobre essa música. E uma atitude estética com relação a tudo.

É por isso que você odeia sertanejo com todas as suas forças. A música pode não ser grande coisa, mas o que você odeia mesmo – talvez mais que a música em si – é o contexto, a cultura que cerca aquele estilo, o jeito de falar da música, os valores de quem gosta daquilo.

Nós não somos capazes de isolar a música desses contextos. Na nossa mente, é tudo uma coisa só.
E acho que Cook vê isso como um tipo de prisão, o que eu concordo. No caso do sertanejo, você pode achar que faz sentido colocar tudo num saco só e pensar que quem está envolvido na produção daquela música é igual a quem consome: tudo horroroso.

Não é isso que eu estou discutindo aqui. Principalmente porque o argumento de Nicholas Cook independe do gênero musical: ele se aplica a todo tipo de música. Em outras palavras, alguém está te enquadrando num tipo específico de “tribo” por causa do tipo de música que você ouve. Mesmo que você esperneie e diga que ouve heavy metal mas toma banho todo dia.

Nicholas Cook está dizendo que nós aplicamos formas fixas de pensamento a outros gêneros e passamos a pensar música naqueles termos somente. Se você só ouve música clássica, acaba criando resistência a ouvir outros estilos porque seus hábitos de escuta e a linguagem que você usa pra falar daquela música treinaram a sua percepção e seu gosto. Mas mais importante que isso, a cultura da música clássica pode impedir que você entenda e aprecie uma cultura musical diferente como jazz, por exemplo.

Isso porque você já associou música clássica a sofisticação, erudição, refinamento, introspecção, sobriedade, sisudez, melancolia e maturidade. E rock você já associou a rebeldia, energia, imaturidade, emoção, juventude, inconseqüência e liberdade. Não é capaz de aplicar as características de um estilo no outro.

Esses adjetivos são, na verdade, elementos extra-musicais, atitudes que aparecem principalmente na biografia dos músicos. Aparecem também nas letras das músicas, claro, o que não deixa de ser importante. No entanto, tais palavras passam a ser a própria definição daquele gênero musical e são adotadas como filosofia de vida pelos ouvintes. E tornam-se a própria definição de música.

“Rock é rebeldia”! “Beethoven é melancólico”, diz você.

E só aprendemos a ouvir música sem tais rótulos depois de algum treino. A maioria não aprende.

E precisa aprender a fazer isso pra poder curtir a música? pergunta você.

Não. Mas é meu trabalho ficar perguntando essas coisas.





entrevista com Simon Frith (ii)

16 11 2008

(continuação da minha tradução comentada da entrevista de Simon Frith, etnomusicólogo e crítico de rock, à revista online “Perfect Sound Forever”. A primeira parte está aqui).

O entrevistador pergunta se Frith acha que a integração das mídias vai tornar mais difícil para os músicos desenvolverem um estilo único e pessoal. Frith é otimista com relação a isso porque acha que as pessoas ainda se interessam por música ao vivo.

Não importa o quanto um álbum de sucesso venda e o quanto a indústria domine isso, eles nunca conseguirão acabar com a necessidade das pessoas de assistir música por si mesmas. Uma das coisas que nós ainda desconhecemos é que, de várias maneiras, a revolução digital permitiu que este tipo de música chegue até o consumidor sem o auxílio de nenhuma estrutura corporativa gigantesca e isto de maneiras que provavelmente não eram possíveis antes. A distribuição tornou-se muito mais fácil. Isto permite que contextos musicais muito pequenos comuniquem-se uns com os outros sem ter que lidar com a AOL-Time-Warner. Se isto vai durar ou se o sistema de música digital vai continuar gratuito ainda não se sabe. É muito cedo pra deduzir.

Particularmente, acho que a busca e necessidade por música ao vivo são coisas que variam muito dependendo do acesso que se tem à música digital. Onde há grande oferta de música digital as pessoas podem não se animar a sair de casa para curtir música ao vivo. Há, claro, situações específicas como música ao vivo acontecendo em igrejas. Ou mesmo o caso de músicos – sempre interessados em música ao vivo – que se reúnem pra tocar ou assistir outro músico.

Há ainda os contextos em que ouvir música não é o objetivo principal do encontro (por exemplo, um som ao vivo num barzinho). Fora estes exemplos, eu me pergunto como é que a resposta dele se encaixaria numa cidade como São Paulo, por exemplo. Como é a cena musical em São Paulo? Eu realmente não sei responder.

De qualquer modo, essas cenas são diferentes em cada lugar, dependendo do país, cidade ou mesmo bairro.

A seguir, Frith fala da experiência dele com jovens, que confirma a idéia de que os rapazes são mais propensos a colecionar álbuns do que as garotas. Ele não tem uma explicação pra isso. Eu acho que talvez os rapazes façam isso com a idéia de usar tal conhecimento para atrair as garotas. Se funciona ou não, é outra conversa.

Frith vê o jornalismo musical funcionando principalmente como um mecanismo de feedback para as gravadoras. Segundo ele, o que as gravadoras conseguem com os críticos é que eles são as primeiras pessoas a reagir a uma gravação com certo grau de independência porque estão tentando alcançar os leitores para os quais escrevem.

Portanto, as gravadoras conseguem ter uma dica sobre o sucesso ou não de uma gravação e se vale a pena promovê-lo ou não. No geral, no entanto, não acredito que os críticos tem muita influência no que as pessoas escolhem comprar. Ouvir um álbum é muito mais importante do que ler a respeito dele.

Taí. Um crítico é mais útil para a gravadora do que para o público. Isso quem está falando é um ex-crítico.

PSF: Nesse contexto, você está falando de resenhas ao invés de textos de reflexão.

Frith: Sim. Boa parte do jornalismo (musical) que se vê diária ou semanalmente é alguém cobrindo a turnê de alguém, algum concerto, ou uma gravação. Textos de reflexão, que ajudam a definir um gênero musical, são desejáveis, mas muito mais raros.

PSF: Então qual seria o objetivo de tais textos de reflexão?

Frith: Eu acho que, em parte, tem a ver com o fato de que é um jeito do jornalista freelancer ganhar algum dinheiro vendendo histórias! (risadas) Tipo, encaixando sua matéria no caderno de artes e tornando-se um tipo de intelectual. Mas falando em termos menos sarcásticos, estes textos podem ser importantes para articular as opiniões de um tipo específico de comunidade musical, de modo que você tem um registro escrito de um gênero em um certo tempo. NME, um dos últimos semanários da Inglaterra ainda expressa mais ou menos o que entende ser as preferências dos seus leitores, o que elas representam para a história do rock e que tipo de banda eles resolveram curtir e porquê. Eles proporcionam à indústria e à audiência um modo de falar. Mas eu não acredito que isto ocorra antes do evento em si (gravação, show, etc.).

PSF: Qual a importância destes textos para o leitor?

Frith: Eu não sei. Quando eu estava no Melody Maker (outro periódico semanal de música britânico), descobrimos que, do ponto de vista dos leitores, eles estavam muito mais interessados em notícias e resenhas e na agenda dos shows do que em textos de reflexão. As pessoas liam sobre os artistas que lhes interessavam. Não estava claro se elas estavam interessadas em ler textos de reflexão sobre o estado da música. Eu acho que textos de reflexão sobre música teriam que ser vistos mais como incluídos entre os textos de reflexão de outras formas de arte e menos no contexto de jornalismo sobre rock. Em outras palavras, se você pegar um bom artigo de um jornalista como Bob Christgau do Voice, ele seria lido junto com outros textos sobre literatura ou arte ou teatro.

PSF: Mas você vê resenhas de discos lá (Voice) também.

Frith: Sim, mas eles têm uma função completamente diferente.

(esta entrevista continua num outro post)





how musical is this picture?

15 11 2008

Quanto tempo demorou pra você associar a foto ao pentagrama?

Pra mim não foi tão rápido. Apesar do título denunciar o que a foto traduz.

Pensar em música não é necessariamente pensar em notação, embora, pra muita gente, a pauta musical seja a primeira imagem mental quando se pensa em música. Para outras tantas, a primeira imagem que aparece poderia ser de alguém fazendo música.

Aliás, seria interessante saber o que te vem à mente quando alguém diz: “música”. Algo do tipo “desenhe alguma coisa ao ouvir essa palavra”. E aí? O que sai? Um CD? Um ipod? Um violão?

Acho que a sua reação a uma pergunta assim revela muito sobre a sua experiência musical, suas expectativas com relação à música e o lugar que ela tem na sua vida.

Mas, de todo modo, achei bonita a foto.

Peguei daqui.





entrevista com Simon Frith (i)

13 11 2008

Simon Frith é um etnomusicólogo que escreve sobre música popular. Ele começou como crítico escrevendo sobre rock e acabou concluindo um doutorado em UCBerkeley.

Ele escreveu “The Sociology of Rock” (1978) e “Performing Rites: On the Value of Popular Music” (1996).

Frith concedeu uma entrevista para a revista online de música “Perfect Sound Forever”, onde ele falou de coisas como indústria cultural, preços de CDs, colecionadores de discos, jornalismo musical, crítica musical, a influência da mídia na vendagem de discos e o que é escrever sobre música.

É sobre alguns trechos dessa conversa que eu queria falar aqui.

Eu gosto de ler entrevistas de pesquisadores que já publicaram bastante sobre determinado assunto porque, neste formato, muitos deles conseguem escapar dos vícios de linguagem e do jargão da academia e colocar suas idéias de modo mais acessível.

Recomendo a leitura da entrevista toda. Se seu inglês não permite isso, minha versão das respostas dele talvez te seja útil (não é uma tradução ipsissima verba). Incluí minhas impressões sobre o que ele diz.

Primeira observação que ele faz sobre a indústria cultural: “um aspecto que é peculiar a este segmento é que paga-se o mesmo por diferentes produções musicais independentemente do custo da produção”. Ele afirma que, na verdade, quanto maior a demanda, mais barato é o produto. E qual a explicação pra essa peculiaridade? Segundo Frith, a indústria fonográfica investe dinheiro em coisas que não trazem lucro (pelo menos não diretamente) e recupera o investimento na venda de produções que geram grande lucro. O negócio é maximizar as vendas de produtos populares e minimizar as vendas dos não tão populares.

Confesso que, a princípio, não entendi muito bem quais seriam esses “produtos não-populares”. Acho que ele está se referindo àquelas produções que não deram certo. De fato, a indústria fonográfica não tem como acertar sempre; produção musical é um negócio de alto risco (ele volta a falar disso mais pra frente).

Acho que isso tem duas implicações. Primeiro, mostra como qualquer avaliação deste mercado é uma coisa imprevisível e até nebulosa – uma falta de transparência que as próprias empresas envolvidas talvez prefiram manter – e ninguém sabe avaliar direito o que acontece direito com os processos de produção musical das grandes gravadoras. Acho que a coisa toda é um tipo de caixa preta, um sistema que segue sua própria lógica.

Segundo, esse lado arriscado das produções musicais explica porque as empresas usam agressivamente todo e qualquer recurso para impedir que seus negócios sejam ameaçados (como o combate à pirataria). Existe muito investimento envolvido.

Outra observação de Frith:

“Sempre se assumiu que, em se tratando de indústria cultural, as pessoas não escolhem as obras por causa do preço. (…) Elas não preferem Eminem a Pink ou a The Streets por causa do preço.

Com os CDs digitais, gravações podem existir para sempre e há um catálogo muito maior de itens antigos; portanto, há menos incentivo para se comprar os novos lançamentos. Então, eu acho que este tipo de custo está começando a ter um efeito. Um catálogo com itens mais antigos é mais barato e as pessoas não estão tão dispostas a comprar algo novo, que elas nunca ouviram e que custa mais. (…) O aumento da oferta e das opções de escolha será enorme e o preço vai acabar sendo um fator mais importante na decisão.”

Faz sentido. Mas eu levaria em consideração o fato de que muitas das novidades são lançamentos atuais de nomes consagrados. Acho que esse é um filão que talvez fuja um pouco dessa análise que ele faz.

Outro aspecto é que para as novas gerações de consumidores, o “clássico” talvez seja tão novidade quanto aquela banda lançada ano passado.

Uma pergunta sobre o “silêncio como um produto a ser comercializado”:

Frith concorda que esta é uma tendência é cita resorts, praias e condomínios fechados como variações dessa idéia: as pessoas pagam para fugir dos ruídos da cidade.

Eu diria que outro exemplo de como isto já está acontecendo é o sucesso de vendas dos fones de neutralizador de ruído (noise cancelling). Caríssimos e que se tornaram um produto extremamente popular (eu também quero um!). Aliás, só eles tornariam viável a idéia dele de uma gravação de silêncio.

“Com o mundo tornando-se cada vez menor, será difícil manter-se as diferenças entre os estilos musicais?

Frith aposta na capacidade criativa dos músicos. E eu concordo. Num mundo de mesmices, há pessoas fazendo coisas incrivelmente originais (enquanto outros, é claro, são virtuoses em copiar).

Outra coisa é que as tradições musicais evoluem – muitas vezes na marra, a contragosto mesmo – e conseguem se diferenciar do que veio antes, mas ainda assim mantendo certa coerência de estilo ao incorporar novos elementos.

(minha “conversa” com Frith continua aqui)





o marqueteiro da música

10 11 2008

It is the producer who has the task of introducing into the recording studio the ear of the public, whose verdict has little to do with technical considerations; it is he who must assess what effect the song will have on audiences at large. It is also he who must try to ‘draw out’ of the singer what the public wants; and conversely to pave the way for the special emotional ties which bring the singer to his public, by himself embodying for the singer an audience which is as yet only potential. It is for him that the singer will try to fashion the right persona. This work of the professionals, which makes possible the operation of a transfer-mechanism between singers and their audiences, goes against the grain of musicological analysis: there is here no such thing as the ‘structure’ of a song. None of the elements which go into its creation, none of the dichotomies which the outside observer can detect, are above the process of negotiation. Their meaning varies, wears out or vanishes. Each song modifies by degrees the basic model, which does not exist as an absolute. The gimmick of yesterday soon becomes the boring tactic of today, as far as public taste is concerned.

(Antoine Hennion em “The Production of Success: an anti-musicology of pop song”)

Hennion escreve sobre mediação em música, um assunto que eu acho fascinante – e crucial – no estudo da música popular. Aqui ele está falando do processo de produção da música pop e descreve o papel do produtor como sendo um tipo de “marqueteiro” do músico, um elo entre o artista e o público. Cada projeto tem uma concepção diferente, que muda de acordo com o que pensa o produtor. E o artista é como um ator, que incorpora um personagem de acordo com a exigência desse diretor.

Qual exatamente a importância do produtor? Ele é uma figura crucial no processo de produção de um álbum, um artista-músico que se coloca entre o artista e o público (que ele precisa conhecer), alguém que compõe, arranja e tem conhecimentos de engenharia de áudio. Não é apenas alguém que documenta a performance de outro, mas um profissional que cria e compõe.

O que eu acho especialmente interessante no texto de Hennion é a idéia de que não existe a “estrutura da canção”, cuja noção a musicologia empresta da música erudita (e o argumento de Hennion é precisamente este: a musicologia não tem as ferramentas para analisar a música popular). O processo de produção da música popular é mais complexo e envolve outros elementos. Na verdade, os elementos da canção – o que se ouve na gravação – vêem em segundo lugar nesse processo de negociação entre o cantor e seu público.

A canção pode ser a mesma mas cada interpretação constitui um projeto musical inédito que varia de intérprete para intérprete. E ainda que o intérprete seja o mesmo, cada regravação é uma concepção musical autônoma, que, por sua vez, traz a marca do produtor.

Eu discordo da idéia de que a decisão do produtor tem pouco a ver com considerações técnicas. Boa parte destes produtores são músicos antes de mais nada. Aliás é daí que podem vir certos conflitos: se ele, por exemplo, priorizar o aspecto técnico da produção em detrimento da concepção artística que caracteriza a carreira do músico com o qual ele está trabalhando.

E quais são os elementos da canção?

A tune, lyrics and a singer: from the musical point of view, a vocal melody with an accompaniment. These elements make up a very limiting configuration as far as the genre is concerned. They exclude the effect of vocal polyphony, as well as pure instrumental composition and its virtuosic possibilities. The music is subordinated in the song to a single main part: a sung melody of a simple type, which must have an accompaniment.

The tunes are tonal, rarely modal. The principal harmonies are familiar; the form depends on the juxtaposition between an insistent chorus and verses which provide progression. But the simplicity of these traditional musical variables is misleading. The song is nothing before the ‘arrangement’, and its creation occurs not really at the moment of its composition but far more at the moment of orchestration, recording and sound mixing. The elements, with their somewhat classical musical grammar, are looked upon chiefly as raw materials to be assembled along with the voice, the sound, the ‘colours’ and the effects of volume and density. The real music of the song hides behind the melody and gives it its meaning. The audience only notices the melody and thinks it is the tune itself which it likes.

“A canção não é nada antes do arranjo e a sua criação ocorre não no momento da composição, mas muito mais no momento da orquestração, gravação e mixagem”. E o único profissional diretamente envolvido em cada uma destas fases é o produtor.

Eu acho fascinante o quanto de marketing envolve a produção de um CD. E estou me referindo à “enganação” que acontece antes de qualquer tentativa de divulgação do material. Estou falando da quantidade enorme de recursos que esse profissional – o produtor – lança mão para criar os efeitos que nós não devemos ouvir ou realçar o que ele quer que percebamos. Me lembra um tipo de “ilusionismo auditivo”. Além disso, ele precisa ter um talento enorme para lidar com artistas melindrosos e com o ego dos músicos e engenheiros; mas mais importante, precisa ser criativo o suficiente para poder mascarar muita coisa na gravação a fim de convencer o ouvinte de que ele está ouvindo “apenas” uma canção gravada pelo grande artista que é seu cantor favorito.





that idiotic thing called a perfect triad

5 11 2008

Eu falei que diatonicismo enche o saco. Veja o que disse meu compositor favorito, também se sentindo sufocado por clichés tonais.

Agora, entre você, — que vive em tempos de tv, radio, internet e ipod — e ele, que morreu em 1918, quem você acha que ouviu mais música tonal?

Debussy’s letters, especially those written in 1894, are full of anguish and raillery against what he saw as the limits that his training had placed on his fantasy. “I’ve spent days trying to capture that ‘nothing’ that Mélisande is made of,” he wrote to one friend. To another he wondered whether there was anything left for a composer to do anymore but recycle clichés: “Impossible to count how often since Gluck people have died to the chord of the [Neapolitan] sixth, and now, from [Massenet’s] Manon to Isolde, they do it to the diminished seventh! And as for that idiotic thing called a perfect triad, it’s only habit, like going in a cafe! As for old Arkel, he “comes from beyond the grave and has that objective prophetic gentleness of those who are soon to die–all of which has to be expressed with do-re-mi-fa-sol-la-ti-do!!! What a profession!

Takuskin citando Debussy (The Oxford History of Western Music, vol. 4, p.89)





lendo e curtindo “The Rest is Noise”, que eu disse que não ia ler

3 11 2008

Estou lendo, conforme falei aqui, “The Rest is Noise: Listening to the Twentieth Century” de Alex Ross. Um livro que eu disse que não ia ler. Tá certo que me obrigaram (coisas de escola).

Pois, estou aprendendo muito e achando a leitura deliciosa.

Tem tanta coisa que eu queria compartilhar aqui e vou tentar fazê-lo aos poucos. Por hora, só posso recomendar que você compre o livro e leia.

Não sei se alguém vai traduzi-lo. Deveriam. Eu gostaria de traduzi-lo, embora tenha que admitir que se a oportunidade surgisse agora, seria uma hora péssima pra eu me envolver num projeto tão grande assim.

Eu já li muita coisa sobre música do século XX. Fiz uma especialização sobre o assunto em 1998 na EMBAP e mesmo no Japão escolhi escrever sobre um compositor contemporâneo (Toru Takemitsu). Aqui em Chicago, tive um seminário bem intenso sobre o assunto, onde lemos dois volumes da coleção Oxford de Taruskin e a edição nova de Cambridge sobre o mesmo assunto editada por Nicholas Cook.

Então estou relativamente familiarizada com a literatura que trata da música deste período. Se não li, pelo menos ouvi falar e sei mais ou menos como é a abordagem.

Uma coisa já separa o livro de Ross dos demais: é um livro agradável de ler, escrito de modo a prender a atenção do leitor.

O leitor que ele tem em mente é o amante da música de concerto, não especialista. Esta foi uma das razões pelas quais eu, a princípio, achei que o livro não tinha muito o que oferecer num curso de doutorado. Quando foi lançado, tenho certeza que muita gente se perguntou “mais um livro sobre música do século XX?”. Confesso que da minha parte, a reação foi um misto de arrogância e desinformação, baseados nos muitos textos ruins de jornalistas que se metem a escrever sobre música erudita sem pesquisar suficientemente o assunto.

Com Ross é diferente: o livro é extraordinariamente bem-pesquisado. E olha que estou apenas no final do segundo capítulo; ainda tem muita coisa pra ler das quase 600 páginas que compõem o livro. Um trecho:

The Austrian premiere of Salome was just one event in a busy season, but, like a flash of lightning, it illuminated a musical world on the verge of traumatic change. Past and future were colliding centuries were passing in the night. Mahler would die in 1911, seemingly to take the Romantic era with him. Puccini’s Turandot, unfinished at his death in 1924, would more or less end a glorious Italian operatic history that began in Florence at the end of the sixteenth century. Schoenberg, in 1908 and 1909, would unleash fearsome sounds that placed him forever at odds with the vox populi. Hitler would seize power in 1933 and attempt the annihilation of a people. And Strauss would survive to a surreal old age. “I have actually outlived myself,” he said in 1948. At the time of his birth, Germany was not yet a single nation and Wagner had yet to finish the Ring of the Nibelung. At the time of Strauss’s death, Germany had been divided into East and West, and American soldiers were whistling “Some Enchanted Evening” in the streets. (p. 10-11)

Um aspecto extremamente informativo e novo na abordagem é a maneira como ele esmiuçou o relacionamento entre compositores: Schoenberg e seus dois famosos discípulos (Berg e Webern), Schoenberg e Mahler, Mahler e Strauss, Strauss e Wagner, Wagner e todo mundo…

Há, claro, as fofocas usuais, mas são incluídas na narrativa com o objetivo de trazer mais luz às personalidades complicadas e relacionamentos igualmente conturbados dos compositores uns com os outros. Então, as histórias desses homens tão geniais estão recheadas de episódios onde eles se mostram invejosos, traiçoeiros, ingênuos, preconceituosos, maldosos e aquelas características todas que nós adoramos apontar nos outros e esconder em nós mesmos.

Ross mostra tudo isso de maneira às vezes divertida, outras vezes trágica, sempre tocante. Veja este trecho sobre Schoenberg e o amante de sua mulher:

The next leg of the journey took place in the midst of personal crisis. Schoenberg had admitted into his circle an unstable character named Richard Gerstl, a gifted painter of brutal Expressionist tendencies. Under Gerstl’s direction, Schoenberg had taken up painting and found that he had a knack for it: his canvas The Red Gaze, in which a gaunt face stares out with bloodshot eyes, has come to be recognized as a minor masterpiece of its time and place. In May 1908 Schoenberg discovered that Gerstl was having an affair with his wife, Mathilde, and that summer he surprised the lovers in a compromising position. Mathilde ran off with Gerstl, then returned to her husband, whereupon Gerstl proceeded to stage a suicide that exceeded Weininger’s in flamboyance: he burned his paintings and hanged himself naked in front of a full-length mirror, as if he wanted to see his own body rendered in Expressionist style. The suicide took place on November 4, 1908, on the night of a Schoenberg concert to which Gerstl had not been invited; evidently, that rejection was the final straw. (p.54)

Observe que este episódio aconteceu há exatos 100 anos (hoje é 4 de novembro de 2008!).

Mas as caracterizações vão além da vida dos atores principais. Ele descreve o que se passava nas ruas e na cabeça das pessoas:

All over fin-de-siècle, strange young men were tramping up narrow stairs to garret rooms and opening doors to secret places. Occult and mystical societies–Theosophist, Rosicrucian, Swedenborgian, kabalistic, and neopagan–promised rupture from the world of the present. In the political sphere, Communists, anarchists, and ultra-nationalists plotted from various angles to overthrow the quasi-liberal monarchies of Europe; Leon Trotsky, in exile in Vienna from 1907 to 1914, began publishing a paper called Pravda. In the nascent field of psychology, Freud placed the ego at the mercy of the id. The world was unstable, and it seemed that one colossal Idea, or, failing that, one well-placed bomb, could bring it tumbling down. There was an almost titillating sense of imminent catastrophe. (p.40)

Além da música, Ross fornece uma das melhores descrições que eu já li do trabalho teórico de Schoenberg, um livro que virou livro texto dos cursos de harmonia no Brasil. Só no Brasil (e outro dia, eu falo porque esse livro não serve pra isso).

Harmonielehre turns out to be an autopsy of a system that has ceased to function. In the time of the Viennese masters, Schoenberg says, tonality had had a logical and ethical basis. But by the beginning of the twentieth century it had become diffuse, unsystematic, incoherent–in a word, diseased. To dramatize this supposed decline, the composer arguments his discourse with the vocabulary of social Darwinism and racial theory. It was then fashionable to believe that certain societies and races had corrupted themselves by mixing with others. Wagner, in his later writings, made the argument explicitly racial and sexual, saying that the Aryan race was destroying itself by crossbreeding with Jews and other foreign bodies. Weininger made the same claim in Sex and Character.

Schoenberg applied the concept of degeneration to music. He introduced a theme that would reappear often as the century went on–the idea that some musical languages were healthy while others were degenerate, that true composers required a pure place in a polluted world, that only by assuming a militant asceticism could they withstand the almost sexual allure of dubious chords. (p.64)





Wisnik sobre Machado

2 11 2008

A Folha online publicou hoje um artigo sobre um livro novo de Zé Miguel Wisnik, um ensaio sobre o conto  “Um Homem Célebre” de Machado de Assis.

Eu já tinha lido o conto e achei interessante a idéia da análise — histórico-etnomusicológica, sim, senhor — da peça de Machado. A idéia é muito boa porque Machado é um maravilhoso comentarista do seu tempo. E embora esta seja uma obra de ficção, é também um relato detalhado de uma prática musical importante daquela época.

Então li o conto de novo porque, até onde me lembrava, não tinha entendido a história nos mesmos termos que Wisnik. Pelo menos no trecho da introdução que a Folha pôs online aqui.

Eu nem li o livro de Wisnik; só esse trecho que a folha publicou. Então é possível que o autor venha a esclarecer (ou retificar) o que escreve nesse início e que eu achei particularmente problemático:

Já a impossibilidade de criar sonatas, sinfonias e réquiens, em Pestana, não se resume na incapacidade de compor, mas corresponde a um deslocamento involuntário do impulso criativo em direção à língua comum das polcas, com espantosa força própria, o que faz do compositor não só uma individualidade em crise mas um índice gritante da cultura, um sinal da vida coletiva, um sintoma exemplar de processos que o conto põe em jogo com grande alcance analítico, e que são muito mais complexos do que a leveza dançante da narrativa faz supor de imediato.

Eu acho que, pelo contrário, a impossibilidade de Pestana de criar sonatas resume-se sim à sua incapacidade de escrever música numa linguagem mais sofisticada. Longe de ser um deslocamento involuntário, é o universo musical que ele conhece e habita. Embora ele seja um compositor bem sucedido de polcas, não consegue compor réquiens, sonatas e sinfonias, que são gêneros que exigem outro grau de competência.

E não consigo ver como Machado o coloca como “sinal da vida coletiva” se ele é um dos poucos privilegiados que têm acesso a estes dois mundos (o popular e o erudito) e é, ao mesmo tempo, o principal responsável pela disseminação do gênero musical que tanto despreza. Ninguém mais pode fazer o que ele faz. Tanto é verdade que ele é um tipo de celebridade, grandemente admirado pela sua obra. As polcas, das quais ele passa o conto inteiro tentando escapar, saem — com incrível facilidade — dos seus próprios dedos e vão alimentar o mercado de venda de partituras.

Outro trecho:

Se somados a essa ilusão os interesses do mercado, que o conto satiriza com precisão hilariante, e que começavam a explorar, no fim do século 19, o futuroso filão da música popular urbana por meio do comércio de partituras, temos, mais refinada, embora ainda insuficiente, uma leitura que identifica no conto uma crítica pioneira da cultura de massas, e pela qual restaria ao artista o papel do peão impotente entre a alienação de uma arte que não descreve o meio em que atua e um mercado que instrumentaliza seus esforços vãos para os fins do lucro.

O viés Adorniano não podia faltar, claro (senão não é academia). Mas eu realmente não consigo ver essa crítica como um aspecto tão crucial do conto. Está lá, sim, mas Pestana não me parece tão impotente assim. Observe que ele fica dois anos sem compor. Volta por necessidade, claro. Mas o representante do mercado parece lhe oferecer condições tão confortáveis de trabalho. E, de novo, vejo sua submissão aos pedidos do editor como a única alternativa que restou a um músico que não tem talento para compor numa linguagem musical mais exigente.

Enfim, análises etnomusicológicas à parte, o conto é uma obra-prima. O que li nessa introdução me deixou curiosa, apesar de não fazer a mesma leitura da história.

E posso sugerir um livro muito bom que trata da música no Rio de Janeiro nesse período? Trata-se de “Music in Imperial Rio de Janeiro: European Culture in a Tropical Milieu” de Cristina Magaldi, que eu não sei se tem tradução para o português.

Termino esse comentário meu sobre o livro de Wisnik — que espero pedir que alguém me mande daí — com um trecho do conto. Que é de uma beleza única, marca desse brasileiro que eu adoro:

Poucos dias depois — uma clara e fresca manhã de maio de 1876 — eram seis horas, Pestana sentiu nos dedos um frêmito particular e conhecido. Ergueu-se devagarinho, para não acordar Maria, que tossira toda a noite, e agora dormia profundamente. Foi para a sala dos retratos, abriu o piano, e, o mais surdamente que pôde, extraiu uma polca. Fê-la publicar com um pseudônimo; nos dois meses seguintes compôs e publicou mais duas. Maria não soube nada; ia tossindo e morrendo, até que expirou, uma noite, nos braços do marido, apavorado e desesperado.

Era noite de Natal. A dor do Pestana teve um acréscimo, porque na vizinhança havia um baile, em que se tocaram várias de suas melhores polcas. Já o baile era duro de sofrer; as suas composições davam-lhe um ar de ironia e perversidade. Ele sentia a cadência dos passos, adivinhava os movimentos, porventura lúbricos, a que obrigava alguma daquelas composições: tudo isso ao pé do cadáver pálido, um molho de ossos, estendido na cama… Todas as horas da noite passaram assim, vagarosas ou rápidas, úmidas de lágrimas e de suor, de águas-da-colônia e de fg(213,’Labarraque,’)Labarraque, saltando sem parar, como ao som da polca de um grande Pestana invisível.

Enterrada a mulher, o viúvo teve uma única preocupação: deixar a música, depois de compor um Réquiem, que faria executar no primeiro aniversário da morte de Maria. Escolheria outro emprego, escrevente, carteiro, mascate, qualquer coisa que lhe fizesse esquecer a arte assassina e surda.

Começou a obra; empregou tudo, arrojo, paciência, meditação, e até os caprichos do acaso, como fizera outrora, imitando Mozart. Releu e estudou o Réquiem deste autor. Passaram-se semanas e meses. A obra, célere a princípio, afrouxou o andar. Pestana tinha altos e baixos. Ora achava-a incompleta, não lhe sentia a alma sacra, nem idéia, nem inspiração, nem método; ora elevava-se-lhe o coração e trabalhava com vigor. Oito meses, nove, dez, onze, e o Réquiem não estava concluído. Redobrou de esforços; esqueceu lições e amizades. Tinha refeito muitas vezes a obra; mas agora queria concluí-la, fosse como fosse. Quinze dias, oito, cinco… A aurora do aniversário veio achá-lo trabalhando.

Contentou-se da missa rezada e simples, para ele só. Não se pode dizer se todas as lágrimas que lhe vieram sorrateiramente aos olhos, foram do marido, ou se algumas eram do compositor. Certo é que nunca mais tornou ao Réquiem.





músicas que eu gosto (I)

1 11 2008

Eu me encho fácil de música puramente tonal. Depois de um tempo, minha atenção começa a se fixar em outras coisas: poesia da letra, estrutura rítmica, textura da música, combinação de timbres (incluo aqui a qualidade da mixagem), forma (seqüência, desenvolvimento e repetições), etc. Quando não encontro alguma coisa interessante nesses aspectos, acho difícil me concentrar e acabo me dispersando. Altura é o que me chama atenção em primeiro lugar. Carrego um bonde por uma melodia bem feita acompanhada por uma boa harmonização.

Isso explica porque eu gosto de coisas tão diferentes, mas só consigo absorver muito de um só tipo de música: jazz, principalmente depois do bebop.

Tenho certeza que a “história de escuta” de cada pessoa influencia, e muito, o gosto. Comigo não é diferente.

Comecei ouvindo jazz porque comecei a tocar sax aos 11 anos. Então me concentrar na linha melódica do solista que improvisa é mais que um hábito, é um vício mesmo.

Eu amo o timbre do sax tenor, então no caso de solistas como Coltrane, Sonny Rollins e outros não tão antigos como Michael Brecker, a música prende minha atenção como poucos gêneros conseguem fazer.

Descobri a música brasileira bem tarde, depois de me acostumar a ouvir jazz. E o que me atraiu foi a letra. Acho que há umas coisas lindíssimas escritas por Chico Buarque, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Edu Lobo e alguns outros. Além disso, muitos desses são excelentes melodistas.

Descobrir Tom Jobim foi outro marco. Nele eu gosto de tudo: melodias, letras, harmonias. Ele tem uma jóias que não são assim tão conhecidas. “Chovendo na Roseira” é uma das que eu mais gosto. Aquela interrupção do compasso 6/8 em dois momentos da música é coisa de gênio.

Mas tenho dificuldade em ouvir gente cantando mal. Então nunca curti as gravações de compositores que desafinam; às vezes simplesmente não gosto do timbre. Tom Jobim, Chico Buarque, Ivan Lins, Milton… não gosto de ouvir cantando, não.

Gosto quando boas cantoras regravam os “clássicos” da MPB (ou simplesmente coisas mais velhas). Um exemplo: cantoras como Gal Costa não entendem muito de música, mas contratam um bom produtor que cuida de tudo. O resultado pode ser surpreendentemente bom, como o que fez Morelembaum em “Mina D’Agua do Meu Canto”.

Gosto muito de pianistas de jazz. Acho que é o que eu mais ouço: Bil Evans, Herbie Hancock, Keith Jarrett, Chick Corea, alguma coisa de Gonzalo Rubalcaba e Lyle Mays. E claro, o meu favorito, Brad Mehldau.

E acho que por causa da proximidade com o jazz, gosto da obra pra piano de Debussy e Eric Satie. Gosto também quando o compositor rouba idéias de tradições não ocidentais como Ravel, o próprio Debussy e Bártok. Todos eles brincam com escalas não diatônicas, o que eu gosto muito.

Gosto de outras coisas, mas outra hora eu falo mais disso.





músicos? bah!

30 10 2008

“Quem sabe faz. Quem não sabe, ensina.”

“If a composer could say what he had to say in words he would not bother trying to say it in music.” (Mahler)

Já te aviso que este é um texto mal-humorado. Então talvez seja melhor você pegar suas idéias politicamente corretas sobre música e ir ler blogs mais cordiais porque hoje eu vou dizer dos músicos, o que Mafoma não disse do toucinho.

Eu acho que competência musical é um negócio super valorizado. É, estou implicando com músicos, mesmo sendo uma deles. Não posso me excluir completamente dessa categoria, já que durante um bom tempo, eu ganhei a vida fazendo música. Mas tem um tipo específico de músico que me irrita e o que segue baseia-se principalmente nos meus aborrecimentos com esse tipo.

Eu trabalhei com vários músicos excelentes cujo ego só perdia, em tamanho, para o talento musical. E uma coisa especialmente aborrecida é a mania de achar que a capacidade de fazer boa música substitui coisas como elegância, bom gosto, gentileza, boas maneiras e leitura.

Vou falar só dessa última. Se você já leu alguma coisa nesse blog, já deve saber o que eu penso de gente que não gosta de ler. Quem não lê, não tem o hábito de ser contrariado e ser contrariado é uma coisa muito, muito saudável. Como resultado, tende a achar que tem o direito de sair por aí falando besteira. Em outras palavras, quem não lê, perde o senso de ridículo.

Já ouvi várias vezes, por exemplo, músicos dizendo que, em se tratando de música, não há nada a ser aprendido em livros.

Muita gente sofre desse mal, a ignorância. Nada de novo nisso. Mas músicos exercem um certo fascínio no imaginário das pessoas e, por isso, todo mundo quer ouvi-los falar. O que nem todo mundo percebe, porém, é que boa parte dos músicos não sabe falar de música. A maioria dos músicos que eu conheço não é capaz de articular, de maneira interessante (ou inteligível), uma idéia relevante sobre música.

Acha que eu estou sendo cruel? Essa opinião não é nova e nem exclusivamente minha. Gente reclamando da preguiça mental dos músicos é a coisa mais comum entre quem tem que trabalhar com essa turma. Guido D’Arezzo, um monge da Idade Média, cujo trabalho era ensinar cantores, referiu-se a músicos em termos bem menos elogiosos. Ele respeitava o musicus (o sujeito que filosofa sobre música), mas achava que o cantor (o sujeito que faz música) não valia muita coisa.

Convenhamos, a rotina do músico, que envolve basicamente, se aprimorar na execução de um instrumento, não contribui para fazer dele um pensador. Tocar escalas o dia todo não te ajuda a melhorar a percepção de coisas que não sejam escalas.

Tocar um instrumento exige exatamente que tipo de esforço intelectual? Não, sério, quais são os processos cognitivos envolvidos na tarefa de aperfeiçoar, vamos dizer, a execução de uma sonata no piano? Claro, envolve um trabalho meticuloso de coordenação motora, controle de movimentos, de assimilação de um número razoável de convenções (que é a leitura de uma partitura), de um certo exercício de criatividade no que diz respeito à expressão. Mas que mais?

Professores de música estão sempre martelando na cabeça do aluno aquela recomendação para jamais tocar mecanicamente. Por que? Porque tocar um instrumento é uma atividade principalmente mecânica, onde é muito fácil fazer as coisas automaticamente, sem pensar. O músico se acostuma com o instrumento, com o repertório, com o estilo e deixa de usar a cabeça.

Quanto mais pensar sobre outras músicas, sobre as implicações da sua música num contexto social maior, sobre a relação da música com outras artes, sobre o seu lugar na vida das pessoas! Não, não dá tempo de pensar nessas coisas todas.

Isso não quer dizer que músicos sejam pessoas desinteressantes. Conversa de músico, sim, é geralmente entediante. Porque, com freqüência, eles falam de música sob o ponto de vista da interpretação, o que é um jeito bem limitado de ver as coisas. Raramente, por exemplo, conseguem avaliar música fora dos seus respectivos instrumentos. Já conversou com aquele pianista que fica mexendo os dedos no ar quando pensa num trecho de música, como se o único modo de lembrar fosse pela ação dos dedos? Em muitos casos, eles não conseguem se interessar, apreciar e, menos ainda, entender tradições musicais muito diferentes das suas. Ouvem o mundo através dos seus ouvidos exclusivamente tonais.

Mas costumam se meter em situações engraçadíssimas, simplesmente porque isso é o que costuma acontecer com gente que só consegue olhar para o próprio umbigo. O que os torna tão divertidos é precisamente o fato de que tamanho talento é freqüentemente acompanhado por um ego igualmente agigantado e uma total falta de sensibilidade para com outras pessoas.

Mas há músicos que não são nada disso, me diz você, de olho na sua guitarra vermelha encostada no canto do quarto. Então eu te digo que tocar um instrumento não faz de você esse tipo de músico a que eu me refiro. Sim, sim, há exceções. É claro que o que eu disse antes é uma generalização. Me deixa que o blog é meu!

Estou falando de um tipo específico. Aquele sujeito que não faz outra coisa que não seja música e que não fala de outra coisa também. Quem alterna aulas de piano com a leitura de livros sobre história política do Brasil, por exemplo, não é bem esse tipo que eu estou falando porque o músico a que eu me refiro não vai tirar tempo do seu estudo pra gastar lendo um livro.

É uma atitude. Uma arrogância que coloca o ato de tocar acima de tudo. A própria frase que abre este texto já me foi repetida ad nauseam por gente que toca.

Acho isso é mais sério num país como o Brasil. Aí, educação musical é luxo; tocar bem um instrumento não é pra quem quer. Então o músico se vê como pertencendo a uma elite. Em países onde todo mundo aprende um instrumento na escola não dá pra manter essa atitude porque há excelentes músicos que não tocam profissionalmente. Há mais pessoas que se dedicam seriamente à música, mas têm outra profissão.

Queria fechar o post dizendo alguma coisa inteligente sobre a frase do Mahler que eu coloquei lá em cima. Mas fiquei com preguiça.

Tchau. Vou tocar violão.