história e verdade

21 11 2008

Acabei de ler no livro do Taruskin:

“Getting its history wrong is part of being a nation”. (do historiador Ernest Renan)

Isto com certeza se aplica também à história musical de um país. E explica parte do post anterior.





Dora Kramer e a eleição americana para os brasileiros

13 11 2008

Agora que a empolgação com a eleição de Obama diminuiu um pouco (ou não?), eu queria postar um texto (na verdade, dois textos) que li, onde a autora comenta esse momento.

Minha ficha demorou a cair, mas finalmente parei de ler Reinaldo Azevedo. Cansei daquele tom amargo e do humor sem-graça para explicar o que deu errado com seu candidato republicano. Na verdade, para explicar o que há de errado com o novo presidente. Não leio mais nada do que ele escreve sobre os EU.

Esta eleição me abriu os olhos.

Também me renovou a admiração por uma colunista do Estadão: Dora Kramer. Um dos textos mais lúcidos sobre a recepção da eleição de Obama aqui no Brasil veio dela. E uma comparação entre Obama e Lula, que vai te deixar desolado por te mostrar um outro lado hopeless dessa figura patética que é o nosso presidente. Dora Kramer tem sido bem crítica do governo Lula, — coisa fácil de fazer, eu sei — mas sendo capaz de mostrar como é nociva a sua incompetência e falta de ação para arbitrar assuntos importantes para o país.

Reproduzo aqui porque só é acessível a assinantes e também porque quero voltar aqui pra ler isso mais vezes. O segundo texto é uma mensagem a todos os anti-americanos do Brasil e do mundo. Os textos são do dia 6.

Dora Kramer – Artimanhas da esperança

Diante de tão farta e variada oferta de interpretações sobre os simbolismos da eleição de Barack Obama, mais fácil é saber o que não terá significado algum no decorrer do mandato do presidente eleito dos Estados Unidos.

A explicação ele mesmo forneceu quando teve desde o início da jornada o tirocínio de dar à cor da pele o molde de uma quase irrelevância. Na saudação pós-vitória, seguiu indiferente enquanto o mundo insistia em lhe pregar ao peito a divisa de “primeiro presidente negro dos Estados Unidos”.

É dele, evidente, o título: o senador democrata é negro, foi eleito presidente e, antes dele, apenas americanos de pele branca tinham chegado à Casa Branca.

Ponto, parágrafo e encerra-se aí a questão, cuja importância objetiva é parecida com a influência concreta que a profissão de torneiro mecânico exerce sobre as atividades de Luiz Inácio da Silva como presidente da República do Brasil.

Sim, há toda a carga histórica do segregacionismo nos Estados Unidos, situação só por ligeireza absoluta comparável à ascensão de um operário que ao se eleger presidente havia militado por 30 anos no sindicalismo e na política. Lula foi uma novidade, não uma surpresa.

Entretanto, há quem – começando pelo presidente brasileiro – os iguale no terreno da representação simbólica da luta do bem contra o mal, exemplos de que o triunfo dos oprimidos sobre os opressores é possível, como se a evolução dos costumes, as mudanças do mundo não fossem parte de um processo natural da civilização.

Mas se a humanidade necessita de emoldurar como fenômeno os episódios marcantes dessas etapas, se carece de dar um valor específico à mobilização de suas expectativas, muito bem. Com esperança não se brinca.

Daí a dizer que o mundo vira do avesso e assume sua melhor face por causa da genética de um presidente já é querer fazer pouco da realidade.

Esta, em seu bom senso e modernidade, Barack Obama descreveu numa frase do discurso de Chicago ao listar os desafios à sua frente: “Duas guerras, um planeta em perigo, a pior crise financeira do século”.

Citou o “caminho longo”, a “subida íngreme”, os “atrasos e falsos inícios” que esperam a todos, aos quais acrescentou as discordâncias às “decisões políticas” que tomará como presidente, a fim de estabelecer um contraponto futuro com o clima de comemoração daquela noite de frisson universal.

Nem a cor da pele de Obama nem o manejo do torno do metalúrgico Lula são capazes de administrar, muito menos de atender, expectativas. A diferença é que aqui o presidente cede ao vezo do personalismo e alimenta a mística para confundi-la com o ato de governar, e lá o eleito desidrata o mito.

Quando ganhou a primeira vez, Lula discursou na Avenida Paulista manifestando a certeza de que a vitória mostrava que, para o brasileiro, “só nós poderemos fazer pelo Brasil o que o Brasil precisa que seja feito”.

Barack Obama falou sobre os valores compartilhados por toda a sociedade à qual pediu permissão para exigir “um novo espírito de serviço, um novo espírito de sacrifício” para que a esperança se materialize como obra coletiva, “bloco por bloco, tijolo por tijolo por tijolo, mão calejada por mão calejada, do jeito que tem sido feito na América há 221 anos”. Sem anular o passado do país nem atribuir a um grupo político partidário o poder de fazer acontecer.

Dever cumprido

O destaque da eleição americana foram as filas monumentais de gente esperando a hora de votar; sem obrigatoriedade, sem feriado, sem revoltas à deriva contra a falta de agilidade do Estado – no caso, de cada Estado individualmente – para organizar a votação.

A “competência” eleitoral, ausente de forma geral na mente do eleitor dos EUA, é uma preocupação muito mais do brasileiro ávido por padrões comparativos que o permitam ressaltar os defeitos de uma nação que pode não contar votos com perfeição, mas funciona perfeitamente nas regras da democracia.

Nas filas dobrando quarteirões, pessoas motivadas para exercer por livre iniciativa um direito com noção de dever cívico e vontade de acertar.

Pode-se não apreciar, mas jamais depreciar atos e escolhas desse (ou de qualquer outro) povo por uma hipotética natureza eivada de arrogância, ignorância, auto-referência, racismo, atraso, moralismo, intolerância.

Americanos são assim, mas não são só assim, bem como brasileiros, noruegueses, portugueses, italianos, moçambicanos, irlandeses, suecos, australianos, islandeses e todos os demais.

A respeito deles raros se arriscam a fazer avaliações pejorativas de caráter tão genérico. Como se imprecações dirigidas a cidadãos de um país todo-poderoso não traduzissem arrogância, ignorância, auto-referência, racismo, atraso, moralismo, em duas palavras: insidiosa intolerância.





Mainardi e você

13 07 2008

Me enchi das coisas de escola e fui dar uma olhada na estante, cheia de livros, da minha anfitriã. Achei “A Tapas e Pontapés” do Diogo Mainardi. Abri pra folhear e acabei lendo ele todinho em algumas horas.

Eu tinha uma idéia errada sobre o projeto do homem. Seu saco de pancadas não é Lula; é o brasileiro. Gostei muito sim, apesar de pertencer ao saco.

Bom, não pertenço ao saco exatamente. Na verdade, o Brasil no qual ele desce o sarrafo é o dos (políticos) brasileiros ladrões, dos (governos) brasileiros incompetentes, do (presidente) brasileiro desonesto, mentiroso e deslumbrado com o poder, do (povão) brasileiro analfabeto, rude e sem cultura, da (literatura e cultura) brasileira aguada e pretensiosa.

É um retrato do Brasil. Feio, não por culpa do retratista – que, de fato, não quis dar nem uma maquiadinha no retratado –, mas porque o Brasil é feio por si só.

Mas, mesmo sendo brasileira, não me senti na linha de tiro. Não achei que era de mim que ele falava. “Para” mim, mas não “de” mim. E acho que esse livro é outro daqueles que mergulha na cabeça do brasileiro que mais abunda essa terra aqui (sim, porque de acordo com o que eu disse, há outros tipos de brasileiros). Pra ser lido junto com Freyre, DaMatta e Buarque de Holanda.

Por isso, não entendo o ódio com que suas crônicas são recebidas. Logicamente, só deveria ficar ofendido quem se identifica com o Brasil perdedor e desonesto que ele descreve – aqueles sujeitos que eu coloquei entre parênteses um parágrafo antes.

Ah, mas e o seu lado patriótico? Não se sente ofendido? Quando me perguntam isso, tenho vontade de discorrer sobre as coisas nada bonitas que penso sobre essa turma – a dos patriotas.  Além disso, meu lado patriótico sempre perdeu para o meu lado pragmático. E sempre perdeu feio.

O fato é que meu lado patriótico fica todo alvoroçado quando estou fora do Brasil. Mas com já um mês de São Paulo, ele minguou de vez.

Ah, e o seu senso de responsabilidade social? Esse eu perdi há oito anos. Tenho quase certeza de que deixei no avião, quando desci em Narita.

Recomendo o livro? Bom, depende. De qual Brasil você faz parte? Ninguém gosta de ser xingado não é? Principalmente quando você sabe que o que te falam é a verdade.





degustação na livraria

11 07 2008

Uma volta pela Livraria Cultura no conjunto Nacional é uma aula sobre como o Brasil vai mal das pernas também na área de publicação, embora os negócios, aparentemente, vão muito bem, obrigado. Passei uma noite na seção de filosofia e antropologia e fiquei abismada com a quantidade de porcaria publicada.

A primeira coisa que chama a atenção numa livraria brasileira é o cuidado que as editoras têm com a aparência dos livros. Coisas como o design da capa, a qualidade do papel, o tipo de fonte.

Existem muitos tipos de livros. Há aqueles que existem para serem saboreados com os sentidos. Têm mais fotos e ilustrações que texto. Desenhos, há aos montes. Você sente a textura do papel com a ponta dos dedos. Chega o papel perto do nariz pra sentir  cheiro da combinação tinta e papel. Boa parte do prazer está em folhear estes livros. E há os livros cujo forte são as idéias que apresentam. Nada de ilustrações. Nem um mísero desenhinho. O brasileiro não gosta de livros de jeito nenhum, mas odeia especialmente este tipo. Ainda dá pra encarar os que têm figurinhas. Mas sem elas, aí é pedir muito.

Os livros de filosofia e antropologia se encaixam nessa segunda categoria. A dos chatinhos. Então as editoras, querendo expandir sua clientela para além dos universitários duros – que, todo mundo sabe, vivem mesmo é de xerox -, investem pesadamente na aparência do livro. Os livros são lindos. As capas são magníficas. O cheiro da tinta no papel faz a gente querer lamber a folha (ou talvez eu esteja sozinha nessa). A fonte escolhida é diferente – até distrai a atenção do que está escrito. Mas e as idéias por trás das palavras? Uma frustração a cada frase.

Coisa mais fácil publicar um livro no Brasil. E lembrando de uma conversa na comunidade dos tradutores do Orkut que li hoje mesmo, aqui, onde se publica muita porcaria, publica-se, também, muita coisa traduzida porcamente, viu? Ter um livro publicado não é atestado de competência.

Agora quando vou na Cultura, nem leio mais a orelha do livro pra decidir se compro ou não. Sinto o livro com a ponta dos dedos, dou uma pancadinha e cheiro o papel. Então olho pros dois lados e dou uma lambidinha numa página do meio.





pequenez

18 03 2008

A história vai mostrar como esse homem é pequeno.

Se o Fernando Henrique podia, por que eu não posso?

Não parece uma criança falando?

Que coisa triste trágica ter alguém assim num cargo desses.





Machado de mau humor

2 02 2008

Algumas coisas nunca mudam…

Ocorreu-me compor umas certas regras para uso dos que freqüentam os bondes.
O desenvolvimento que tem tido entre nós este meio de locomoção, essencialmente democrático, exige que ele não seja deixado ao puro capricho dos passageiros. Não posso dar aqui mais do que alguns extratos do meu trabalho; basta saber que tem nada menos de setenta artigos. Vão apenas dez.

Art. I – Dos Encatarrados – Os encatarrados podem entrar nos bondes, com a condição de não tossirem mais de três vezes dentro de uma hora, e no caso de pigarro, quatro.
Quando a tosse for tão teimosa que não permita esta limitação, os encatarrados têm dois alvitres: ou irem a pé, que é bom exercício, ou meterem-se na cama. Também podem ir tossir para o diabo que os carregue.
Os encatarrados que estiverem nas extremidades dos bancos devem escarrar para o lado da rua, em vez de o fazerem no próprio bonde, salvo caso de aposta, preceito religioso ou maçônico, vocação etc., etc.

Art. II – Da Posição Das Pernas – As pernas devem trazer-se de modo que não constranjam os passageiros do mesmo banco. Não se proíbem formalmente as pernas abertas, mas com a condição de pagar os outros lugares, e fazê-los ocupar por meninas pobres ou viúvas desvalidas mediante uma pequena gratificação.

Art. III – Da Leitura Dos Jornais – Cada vez que um passageiro abrir a folha que estiver lendo, terá o cuidado de não roçar as ventas dos vizinhos, nem levar-lhes os chapéus; também não é bonito encostá-lo no passageiro da frente.

Art. IV – Dos Quebra-Queixos – É permitido o uso dos quebra-queixos em duas circunstâncias: a primeira quando não for ninguém no bonde, e a segunda ao descer.

Art. V – Dos Amoladores – Toda pessoa que sentir necessidade de contar os seus negócios íntimos, sem interesse para ninguém, deve primeiro indagar do passageiro escolhido para uma tal confidência, se ele é assaz cristão e resignado. No caso afirmativo, perguntar-lhe-á se prefere a narração ou uma descarga de ponta-pés; a pessoa deve imediatamente pespegá-los.
No caso, aliás extraordinário e quase absurdo, de que o passageiro prefira a narração, o proponente deve fazê-la minuciosamente, carregando muito nas circunstâncias mais triviais, repetindo os ditos, pisando e repisando as cousas, de modo que o paciente jure aos seus deuses não cair em outra.

Art. VI – Dos Perdigotos – Reserva-se o banco da frente para a emissão dos perdigotos, salvo as ocasiões em que a chuva obriga a mudar a posição do banco. Também podem emitir-se na plataforma de trás, indo o passageiro ao pé do condutor, e a cara voltada para a rua.

Art. VII – Das Conversas – Quando duas pessoas, sentadas a distância, quiserem dizer alguma cousa em voz alta, terão cuidado de não gastar mais de quinze ou vinte palavras, e, em todo o caso, sem alusões maliciosas, principalmente se houver senhoras.

Art. VIII – Das Pessoas Com Morrinha – As pessoas que tiverem morrinha podem participar dos bondes indiretamente: ficando na calçada, e vendo-os passar de um lado para outro. Será melhor que morem em rua por onde eles passem, porque então podem vê-los mesmo da janela.

Art. IX – Da Passagem Às Senhoras – Quando alguma senhora entrar, deve o passageiro da ponta levantar-se e dar passagem, não só porque é incômodo para ele ficar sentado, apertando as pernas, como porque é uma grande má criação.

Art. X – Do Pagamento – Quando o passageiro estiver ao pé de um conhecido, e, ao vir o condutor receber as passagens, notar que o conhecido procura o dinheiro com certa vagareza ou dificuldade, deve imediatamente pagar por ele: é evidente que, se ele quisesse pagar, teria tirado o dinheiro mais depressa.





de volta

31 12 2007

De volta ao Brasil, meio contra minha vontade (ainda que só por um período de tempo), me lembrei do conto A Parasita Azul de Machado.

Há cerca de dezesseis anos, desembarcava no Rio de Janeiro, vindo da Europa, o sr. Camilo Seabra, goiano de nascimento, que ali fora estudar medicina e voltava agora com o diploma na algibeira e umas saudades no coração. Voltava depois de uma ausência de oito anos, tendo visto e admirado as principais coisas que um homem pode ver e admirar por lá, quando não lhe falta gosto nem meios. Ambas as coisas possuía, e se tivesse também, não digo muito, mas um pouco mais de juízo, houvera gozado melhor do que gozou, e com justiça poderia dizer que vivera.

Não abonava muito os seus sentimentos patrióticos o rosto com que entrou a barra da capital brasileira. Trazia-o fechado e merencório, como quem abafa em si alguma coisa que não é exatamente a bem-aventurança terrestre. Arrastou um olhar aborrecido pela cidade, que se ia desenrolando à proporção que o navio se dirigia ao ancoradouro. Quando veio a hora de desembarcar fê-lo com a mesma alegria com que o réu transpõe os umbrais do cárcere. O escaler afastou-se do navio em cujo mastro flutuava uma bandeira tricolor; Camilo murmurou consigo:

— Adeus, França!

Depois envolveu-se num magnífico silêncio e deixou-se levar para terra.

O espetáculo da cidade, que ele não via há tanto tempo, sempre lhe prendeu um pouco a atenção. Não tinha porém dentro da alma o alvoroço de Ulisses ao ver a terra da sua pátria. Era antes pasmo e tédio. Comparava o que via agora com o que vira durante longos anos, e sentia a mais e mais apertar-lhe o coração a dolorosa saudade que o minava. Encaminhou-se para o primeiro hotel que lhe pareceu conveniente, e ali determinou passar alguns dias antes de seguir para Goiás. Jantou solitário e triste com a mente cheia de mil recordações do mundo que acabava de deixar, e para dar ainda maior desafogo à memória, apenas acabado o jantar, estendeu-se num canapé, e começou a desfiar consigo mesmo um rosário de cruéis desventuras.

Mas não é a saudade de Chicago que incomoda. Esta é, de fato, muito grande. O irritante é me sentir tão em casa aqui (e não sentir o mesmo lá).

Feliz 2008.