uma resolução musical

8 01 2009

Resolução de ano novo é mais ou menos como fazer um desejo soprando as velinhas do bolo de aniversário: se contar pra outra pessoa, a coisa desanda. Mas mais honesto que culpar a superstição é admitir que é por negligência nossa que boa parte delas sai do papel para uma existência curta e atropelada.

“Como é que fui pensar que daria conta de mais esse compromisso?”, admitimos depois de uma semana. E então  o novo plano logo murcha para cair de vez no esquecimento. Quer dizer, até o ano que vem. Ele vai voltar à vida lá pelo fim de dezembro quando, com o novo ano, você se sentir capaz de abraçar o mundo mais uma vez.

Mas eu fiquei empolgada com uma ideia que tive pra este ano e queria te contar.

Como é sempre o caso, minha resolução é mais do que eu dou conta, que é onde está a graça da coisa. O plano, no entanto, é bem simples: estou lendo o livro de Tom Moon “1000 Recordings to Hear Before You Die” como uma forma de ampliar meu “menu musical”. Cada dia baixo um ou dois álbuns da lista e ouço com toda atenção.

A idéia parece mais fácil do que realmente é porque estou me propondo a parar o que quer que esteja fazendo e ouvir a música. E estou sendo obrigada a ouvir coisas para as quais nunca dei bola e outras das quais sempre fugi. Agora dá pra entender de onde veio o AC/DC do outro post, não?

E vou te dizer, com uma ponta de orgulho, que estou me descobrindo mais tolerante do que imaginava. Claro, com esses anos todos ouvindo e lendo sobre música, já ouvi muita coisa que não gostava; ouvir o que não me agrada é meio que rotina. Mas ouvia porque tinha que escrever a respeito e pronto.

Agora é diferente. Estou tentando deixar de lado meu nariz empinado e me abrindo à música. E estou surpresa porque descobri algumas coisas novas que gostei muito.

Claro, trata-se de uma lista bem escolhida e a maioria do que está lá tem seu mérito. Lembre-se que é a escolha de um moribundo; o autor vende a ideia de que realmente vale a pena ouvir tudo isso antes de ir embora. Coisa séria, tá pensando o quê?

Então escuto cada álbum  com respeito, com a garantia do autor, que todos têm razões especialíssimas para entrar na lista, enquanto vários milhares ficaram de fora.

Sim, sim, há um bocado de pretensão por trás da idéia de se escrever um livro com um título – e objetivo – pomposo desses. Mas acho que pode funcionar se você não levar a coisa tão a sério. (Agora me diz se não é engraçado ouvir isso de uma etnomusicóloga).

Aliás, como não poderia ser diferente, já saquei do meu estetoscópio etnomusicológico (sim, existe esse treco) e me pus a auscultar minhas reais intenções pra embarcar num projeto desses. O que estou fazendo?

Pra ser bem sincera, é uma coisa bem despretensiosa. Estou mesmo a fim de conhecer coisas novas. E o livro ajuda a organizar as coisas. Por mim mesma, acabo sempre voltando às coisas que mais gosto; estava um pouco enjoada.

Cheguei também à conclusão que o livro meio que assumiu a função da obsoleta capinha do CD com informações sobre a gravação. Embora seja um pouco diferente porque inclui também uma ou outra fofoquinha sobre os músicos, além dos tracks preferidos do autor. Ele também sugere outros álbuns que poderiam te agradar se você gostou do que ouviu.

A Wikipédia tem muito do que está no livro. Mas, veja bem, é diferente “folhear” a informação. Todo mundo sabe que por mais que o nosso cérebro passe batido por uma informação que lê online, há grande chance de que não faça o mesmo se ler a mesmíssima frase num livro impresso.

Ler os comentários do autor não deixa também de ser uma maneira de “possuir” a música, já que um arquivo no laptop está longe de me fazer sentir que a música me pertence. Você também tem essa sensação? E ouvir o álbum todo também tem um pouco disso: ouvindo, me aproprio da música. “Pronto, acabei”, digo no final. E decido se vou ouvir de novo coisas daquele tipo ou se já deu. Em outras palavras, outra ilusãozinha minha meu poder sobre a música.

Mesmo assim, só leio os comentários de Moon depois de ouvir: não precisamos que alguém nos diga do que gostar, não é? Mas a idéia dele nem parece ser essa.

Nem se trata de “estudar” a música. Mas expandir meu universo musical, seja pelo maior contato com coisas que não conheço direito ou me aprofundando em conhecer aquilo que eu só ouvi de raspão.

Enfim, uma brincadeira leve – pelo menos, até os compromissos acadêmicos voltarem com tudo – e divertida. Vamos ver se consigo levar a coisa adiante. Te falo.





Dora Kramer e a eleição americana para os brasileiros

13 11 2008

Agora que a empolgação com a eleição de Obama diminuiu um pouco (ou não?), eu queria postar um texto (na verdade, dois textos) que li, onde a autora comenta esse momento.

Minha ficha demorou a cair, mas finalmente parei de ler Reinaldo Azevedo. Cansei daquele tom amargo e do humor sem-graça para explicar o que deu errado com seu candidato republicano. Na verdade, para explicar o que há de errado com o novo presidente. Não leio mais nada do que ele escreve sobre os EU.

Esta eleição me abriu os olhos.

Também me renovou a admiração por uma colunista do Estadão: Dora Kramer. Um dos textos mais lúcidos sobre a recepção da eleição de Obama aqui no Brasil veio dela. E uma comparação entre Obama e Lula, que vai te deixar desolado por te mostrar um outro lado hopeless dessa figura patética que é o nosso presidente. Dora Kramer tem sido bem crítica do governo Lula, — coisa fácil de fazer, eu sei — mas sendo capaz de mostrar como é nociva a sua incompetência e falta de ação para arbitrar assuntos importantes para o país.

Reproduzo aqui porque só é acessível a assinantes e também porque quero voltar aqui pra ler isso mais vezes. O segundo texto é uma mensagem a todos os anti-americanos do Brasil e do mundo. Os textos são do dia 6.

Dora Kramer – Artimanhas da esperança

Diante de tão farta e variada oferta de interpretações sobre os simbolismos da eleição de Barack Obama, mais fácil é saber o que não terá significado algum no decorrer do mandato do presidente eleito dos Estados Unidos.

A explicação ele mesmo forneceu quando teve desde o início da jornada o tirocínio de dar à cor da pele o molde de uma quase irrelevância. Na saudação pós-vitória, seguiu indiferente enquanto o mundo insistia em lhe pregar ao peito a divisa de “primeiro presidente negro dos Estados Unidos”.

É dele, evidente, o título: o senador democrata é negro, foi eleito presidente e, antes dele, apenas americanos de pele branca tinham chegado à Casa Branca.

Ponto, parágrafo e encerra-se aí a questão, cuja importância objetiva é parecida com a influência concreta que a profissão de torneiro mecânico exerce sobre as atividades de Luiz Inácio da Silva como presidente da República do Brasil.

Sim, há toda a carga histórica do segregacionismo nos Estados Unidos, situação só por ligeireza absoluta comparável à ascensão de um operário que ao se eleger presidente havia militado por 30 anos no sindicalismo e na política. Lula foi uma novidade, não uma surpresa.

Entretanto, há quem – começando pelo presidente brasileiro – os iguale no terreno da representação simbólica da luta do bem contra o mal, exemplos de que o triunfo dos oprimidos sobre os opressores é possível, como se a evolução dos costumes, as mudanças do mundo não fossem parte de um processo natural da civilização.

Mas se a humanidade necessita de emoldurar como fenômeno os episódios marcantes dessas etapas, se carece de dar um valor específico à mobilização de suas expectativas, muito bem. Com esperança não se brinca.

Daí a dizer que o mundo vira do avesso e assume sua melhor face por causa da genética de um presidente já é querer fazer pouco da realidade.

Esta, em seu bom senso e modernidade, Barack Obama descreveu numa frase do discurso de Chicago ao listar os desafios à sua frente: “Duas guerras, um planeta em perigo, a pior crise financeira do século”.

Citou o “caminho longo”, a “subida íngreme”, os “atrasos e falsos inícios” que esperam a todos, aos quais acrescentou as discordâncias às “decisões políticas” que tomará como presidente, a fim de estabelecer um contraponto futuro com o clima de comemoração daquela noite de frisson universal.

Nem a cor da pele de Obama nem o manejo do torno do metalúrgico Lula são capazes de administrar, muito menos de atender, expectativas. A diferença é que aqui o presidente cede ao vezo do personalismo e alimenta a mística para confundi-la com o ato de governar, e lá o eleito desidrata o mito.

Quando ganhou a primeira vez, Lula discursou na Avenida Paulista manifestando a certeza de que a vitória mostrava que, para o brasileiro, “só nós poderemos fazer pelo Brasil o que o Brasil precisa que seja feito”.

Barack Obama falou sobre os valores compartilhados por toda a sociedade à qual pediu permissão para exigir “um novo espírito de serviço, um novo espírito de sacrifício” para que a esperança se materialize como obra coletiva, “bloco por bloco, tijolo por tijolo por tijolo, mão calejada por mão calejada, do jeito que tem sido feito na América há 221 anos”. Sem anular o passado do país nem atribuir a um grupo político partidário o poder de fazer acontecer.

Dever cumprido

O destaque da eleição americana foram as filas monumentais de gente esperando a hora de votar; sem obrigatoriedade, sem feriado, sem revoltas à deriva contra a falta de agilidade do Estado – no caso, de cada Estado individualmente – para organizar a votação.

A “competência” eleitoral, ausente de forma geral na mente do eleitor dos EUA, é uma preocupação muito mais do brasileiro ávido por padrões comparativos que o permitam ressaltar os defeitos de uma nação que pode não contar votos com perfeição, mas funciona perfeitamente nas regras da democracia.

Nas filas dobrando quarteirões, pessoas motivadas para exercer por livre iniciativa um direito com noção de dever cívico e vontade de acertar.

Pode-se não apreciar, mas jamais depreciar atos e escolhas desse (ou de qualquer outro) povo por uma hipotética natureza eivada de arrogância, ignorância, auto-referência, racismo, atraso, moralismo, intolerância.

Americanos são assim, mas não são só assim, bem como brasileiros, noruegueses, portugueses, italianos, moçambicanos, irlandeses, suecos, australianos, islandeses e todos os demais.

A respeito deles raros se arriscam a fazer avaliações pejorativas de caráter tão genérico. Como se imprecações dirigidas a cidadãos de um país todo-poderoso não traduzissem arrogância, ignorância, auto-referência, racismo, atraso, moralismo, em duas palavras: insidiosa intolerância.





uma crítica a James Wood

12 11 2008

Já comentei várias vezes aqui sobre minha admiração pelos textos de James Wood. Eu acho que ele escreve lindamente. Mais importante que isso, me mostra um tipo de leitura possível que eu não imaginava existir.

Wood consegue me convencer das razões para suas ranzinzices estéticas contra autores contemporâneos e me mostra o que admirar nos clássicos.

Mas eu confesso que não tenho tanta experiência assim com literatura. Alguém como Daniel Green, que é o autor do blog The Reading Experience, do qual eu falei dia desses, acha que James Wood não tem tanto assim a dizer sobre literatura.

Bom, Green também é um escritor convincente e de um estilo tão elegante e claro quanto Wood. De fato, alguns minutos no blog dele logo viram horas e quando você vê está viciado. Ele é muito claro na maneira como coloca seus argumentos (como Wood) e fica difícil não concordar com o que ele diz.

Eles concordam em algumas coisas, mas, de modo geral, Green parece ter mais restrições que elogios ao criticismo de Wood.

Green resenhou o livro de Wood que eu estou lendo “How Fiction Works”.

Um trecho:

But for those of us who think that Wood’s description of “how fiction works” is but one possible (and highly tendentious) description, that despite Wood’s occasional citation of a still-living writer and his lip service to the notion that the novel “always wriggles out of the rules thrown around it,” his account is mostly backward-looking, an examination of what has been done, rather than forward-looking, a discussion of fiction that emphasizes what still might be done. The message that “any kind of common reader” is likely to take from his book is that the art of fiction is now settled, all of the possible aesthetic innovations the form might offer already achieved. If you want to read the best that fiction has to offer, Wood’s book clearly enough implies, stick with the line of Anglo-European fiction extending from Henry James to Henry Green. If you want to be an esteemed writer, do what Dostoevsky does, what D.H. Lawrence does, what Virginia Woolf and Saul Bellow do.

E eu concordo com Green. Wood olha para o passado e praticamente nenhum autor vivo, escrevendo hoje, merece sua aprovação. Ele analisa uma arte “congelada no tempo” e como diz Green, nao admite qualquer espécie de evolução.

Outra passagem:

Ultimately the most disconcerting thing about How Fiction Works, and about James Wood’s criticism in general, is that while Wood on the one hand expresses near-reverence for the virtues of fiction, the terms in which he judges the value of fiction as a literary form implicitly disparages it. He doesn’t want to let fiction be fiction. Instead, he asks that it provide some combination of psychological analysis, metaphysics, and moral instruction, and assumes that novelists are in some way qualified to offer these services. He abjures them to avoid “aestheticism” (too much art) and to instead be respectful of “life.”

Wood está pedindo demais do autor. E boa parte dos escritores não está disposta a seguir “suas” regras, que não admitem qualquer tipo de experimento  com a noção tradicional que ele tem do que vem a ser boa literatura. Por isso, a literatura que ele descreve jamais vai se renovar.

Green resume seu argumento final contra Wood:

There is another view of what fiction can accomplish, one that does not make it subservient to an agenda of fidelity to “the real.” In this view, what continues to elude the novel as a form is the limit of its own potential for innovation. In this view, life is always already conventional, and a novel exists not as a reproduction of reality but as an addition to it, a supplement. And in this view, a work of fiction is measured by the justice it does to the aesthetic possibilities of the form, possibilities that surely exceed the arbitrary boundaries James Wood wants to enforce. Readers of How Fiction Works should keep in mind that, even if it is true that “The house of fiction has many windows, but only two or three doors, the door being opened here is still not the only one available.

Este último ponto, eu vejo como um elogio velado. A crítica é à arrogância de achar que a leitura de Wood é a única possível. Mas no fim de tudo, ela é uma leitura possível. O erro está em vê-la como única.





Dalyrmple e os sebos

4 11 2008

Theodore Dalyrmple falando em “Bibliophilia and Biblioclasm” de sebos e livros e porque ele prefere comprá-los usados, de preferência quando os donos escrevem alguma coisa neles.

Ele começa falando de donos de sebo e cita duas histórias engraçadas:

As a long-time habitué of second-hand bookshops, I should say that this is a fairly typical attitude of booksellers to buyers, whom they regard largely with contempt. This contempt arises not only from the character of book-buyers, but from their tastes. I knew a bookseller, a communist of the Enver Hoxha faction, who was constantly frustrated and irritated that the elderly black ladies of the area in which he had his shop were always asking for Bibles rather than for revolutionary literature that he thought that they, as the most downtrodden of the downtrodden, ought to have been reading. Another bookshop owner of my acquaintance so hated his customers that he would sometimes play Schoenberg very loudly to clear the shop of them. It was a very effective technique.

Schoenberg pra afugentar os clientes é ótimo. Muito boa.

Mas por que será que donos de sebo são mal-humorados e ranzinzas? Eu lembro que, no último inverno, visitei um sebo na Xavier de Toledo em São Paulo onde o dono era de uma grosseria impressionante. Eu estava sem o cartão e pedi pra que ele reservasse uns livros, que eu tinha achado depois de algumas horas procurando nas prateleiras. Nenhuma raridade. Ele se recusou a reservá-los por um dia. “Se alguém vier e se interessar, vou vender”, respondeu mal-humorado. Eu resolvi arriscar e no dia seguinte, achei os mesmos livros num outro sebo pela metade do preço.

Dalyrmple também fala dos prazeres de se gastar tempo no sebo procurando uma coisa que não se sabe direito qual é:

But the pleasure of second-hand bookshops is not only in finding what you want: it is in leafing through many volumes and alighting upon something that you never knew existed, that fascinates you and therefore widens your horizons in a completely unanticipated way, helping you to make the most unexpected connections.

(…)

For the last twelve months or so, I have taken to inscribing all the books I read, in a bid no doubt to outlast my own death.

Eu também tenho mania de rabiscar meus livros. Não necessariamente escrevendo meu nome nas primeiras páginas, mas comentando alguma coisa nas margens ou grifando as partes que gosto.

Mas não penso na posteridade. Quando eu me for de vez deste mundo, é bem provável que eles vão é acabar num outro sebo, nas mãos de um outro velho ranzinza.





lendo e curtindo “The Rest is Noise”, que eu disse que não ia ler

3 11 2008

Estou lendo, conforme falei aqui, “The Rest is Noise: Listening to the Twentieth Century” de Alex Ross. Um livro que eu disse que não ia ler. Tá certo que me obrigaram (coisas de escola).

Pois, estou aprendendo muito e achando a leitura deliciosa.

Tem tanta coisa que eu queria compartilhar aqui e vou tentar fazê-lo aos poucos. Por hora, só posso recomendar que você compre o livro e leia.

Não sei se alguém vai traduzi-lo. Deveriam. Eu gostaria de traduzi-lo, embora tenha que admitir que se a oportunidade surgisse agora, seria uma hora péssima pra eu me envolver num projeto tão grande assim.

Eu já li muita coisa sobre música do século XX. Fiz uma especialização sobre o assunto em 1998 na EMBAP e mesmo no Japão escolhi escrever sobre um compositor contemporâneo (Toru Takemitsu). Aqui em Chicago, tive um seminário bem intenso sobre o assunto, onde lemos dois volumes da coleção Oxford de Taruskin e a edição nova de Cambridge sobre o mesmo assunto editada por Nicholas Cook.

Então estou relativamente familiarizada com a literatura que trata da música deste período. Se não li, pelo menos ouvi falar e sei mais ou menos como é a abordagem.

Uma coisa já separa o livro de Ross dos demais: é um livro agradável de ler, escrito de modo a prender a atenção do leitor.

O leitor que ele tem em mente é o amante da música de concerto, não especialista. Esta foi uma das razões pelas quais eu, a princípio, achei que o livro não tinha muito o que oferecer num curso de doutorado. Quando foi lançado, tenho certeza que muita gente se perguntou “mais um livro sobre música do século XX?”. Confesso que da minha parte, a reação foi um misto de arrogância e desinformação, baseados nos muitos textos ruins de jornalistas que se metem a escrever sobre música erudita sem pesquisar suficientemente o assunto.

Com Ross é diferente: o livro é extraordinariamente bem-pesquisado. E olha que estou apenas no final do segundo capítulo; ainda tem muita coisa pra ler das quase 600 páginas que compõem o livro. Um trecho:

The Austrian premiere of Salome was just one event in a busy season, but, like a flash of lightning, it illuminated a musical world on the verge of traumatic change. Past and future were colliding centuries were passing in the night. Mahler would die in 1911, seemingly to take the Romantic era with him. Puccini’s Turandot, unfinished at his death in 1924, would more or less end a glorious Italian operatic history that began in Florence at the end of the sixteenth century. Schoenberg, in 1908 and 1909, would unleash fearsome sounds that placed him forever at odds with the vox populi. Hitler would seize power in 1933 and attempt the annihilation of a people. And Strauss would survive to a surreal old age. “I have actually outlived myself,” he said in 1948. At the time of his birth, Germany was not yet a single nation and Wagner had yet to finish the Ring of the Nibelung. At the time of Strauss’s death, Germany had been divided into East and West, and American soldiers were whistling “Some Enchanted Evening” in the streets. (p. 10-11)

Um aspecto extremamente informativo e novo na abordagem é a maneira como ele esmiuçou o relacionamento entre compositores: Schoenberg e seus dois famosos discípulos (Berg e Webern), Schoenberg e Mahler, Mahler e Strauss, Strauss e Wagner, Wagner e todo mundo…

Há, claro, as fofocas usuais, mas são incluídas na narrativa com o objetivo de trazer mais luz às personalidades complicadas e relacionamentos igualmente conturbados dos compositores uns com os outros. Então, as histórias desses homens tão geniais estão recheadas de episódios onde eles se mostram invejosos, traiçoeiros, ingênuos, preconceituosos, maldosos e aquelas características todas que nós adoramos apontar nos outros e esconder em nós mesmos.

Ross mostra tudo isso de maneira às vezes divertida, outras vezes trágica, sempre tocante. Veja este trecho sobre Schoenberg e o amante de sua mulher:

The next leg of the journey took place in the midst of personal crisis. Schoenberg had admitted into his circle an unstable character named Richard Gerstl, a gifted painter of brutal Expressionist tendencies. Under Gerstl’s direction, Schoenberg had taken up painting and found that he had a knack for it: his canvas The Red Gaze, in which a gaunt face stares out with bloodshot eyes, has come to be recognized as a minor masterpiece of its time and place. In May 1908 Schoenberg discovered that Gerstl was having an affair with his wife, Mathilde, and that summer he surprised the lovers in a compromising position. Mathilde ran off with Gerstl, then returned to her husband, whereupon Gerstl proceeded to stage a suicide that exceeded Weininger’s in flamboyance: he burned his paintings and hanged himself naked in front of a full-length mirror, as if he wanted to see his own body rendered in Expressionist style. The suicide took place on November 4, 1908, on the night of a Schoenberg concert to which Gerstl had not been invited; evidently, that rejection was the final straw. (p.54)

Observe que este episódio aconteceu há exatos 100 anos (hoje é 4 de novembro de 2008!).

Mas as caracterizações vão além da vida dos atores principais. Ele descreve o que se passava nas ruas e na cabeça das pessoas:

All over fin-de-siècle, strange young men were tramping up narrow stairs to garret rooms and opening doors to secret places. Occult and mystical societies–Theosophist, Rosicrucian, Swedenborgian, kabalistic, and neopagan–promised rupture from the world of the present. In the political sphere, Communists, anarchists, and ultra-nationalists plotted from various angles to overthrow the quasi-liberal monarchies of Europe; Leon Trotsky, in exile in Vienna from 1907 to 1914, began publishing a paper called Pravda. In the nascent field of psychology, Freud placed the ego at the mercy of the id. The world was unstable, and it seemed that one colossal Idea, or, failing that, one well-placed bomb, could bring it tumbling down. There was an almost titillating sense of imminent catastrophe. (p.40)

Além da música, Ross fornece uma das melhores descrições que eu já li do trabalho teórico de Schoenberg, um livro que virou livro texto dos cursos de harmonia no Brasil. Só no Brasil (e outro dia, eu falo porque esse livro não serve pra isso).

Harmonielehre turns out to be an autopsy of a system that has ceased to function. In the time of the Viennese masters, Schoenberg says, tonality had had a logical and ethical basis. But by the beginning of the twentieth century it had become diffuse, unsystematic, incoherent–in a word, diseased. To dramatize this supposed decline, the composer arguments his discourse with the vocabulary of social Darwinism and racial theory. It was then fashionable to believe that certain societies and races had corrupted themselves by mixing with others. Wagner, in his later writings, made the argument explicitly racial and sexual, saying that the Aryan race was destroying itself by crossbreeding with Jews and other foreign bodies. Weininger made the same claim in Sex and Character.

Schoenberg applied the concept of degeneration to music. He introduced a theme that would reappear often as the century went on–the idea that some musical languages were healthy while others were degenerate, that true composers required a pure place in a polluted world, that only by assuming a militant asceticism could they withstand the almost sexual allure of dubious chords. (p.64)





Wisnik sobre Machado

2 11 2008

A Folha online publicou hoje um artigo sobre um livro novo de Zé Miguel Wisnik, um ensaio sobre o conto  “Um Homem Célebre” de Machado de Assis.

Eu já tinha lido o conto e achei interessante a idéia da análise — histórico-etnomusicológica, sim, senhor — da peça de Machado. A idéia é muito boa porque Machado é um maravilhoso comentarista do seu tempo. E embora esta seja uma obra de ficção, é também um relato detalhado de uma prática musical importante daquela época.

Então li o conto de novo porque, até onde me lembrava, não tinha entendido a história nos mesmos termos que Wisnik. Pelo menos no trecho da introdução que a Folha pôs online aqui.

Eu nem li o livro de Wisnik; só esse trecho que a folha publicou. Então é possível que o autor venha a esclarecer (ou retificar) o que escreve nesse início e que eu achei particularmente problemático:

Já a impossibilidade de criar sonatas, sinfonias e réquiens, em Pestana, não se resume na incapacidade de compor, mas corresponde a um deslocamento involuntário do impulso criativo em direção à língua comum das polcas, com espantosa força própria, o que faz do compositor não só uma individualidade em crise mas um índice gritante da cultura, um sinal da vida coletiva, um sintoma exemplar de processos que o conto põe em jogo com grande alcance analítico, e que são muito mais complexos do que a leveza dançante da narrativa faz supor de imediato.

Eu acho que, pelo contrário, a impossibilidade de Pestana de criar sonatas resume-se sim à sua incapacidade de escrever música numa linguagem mais sofisticada. Longe de ser um deslocamento involuntário, é o universo musical que ele conhece e habita. Embora ele seja um compositor bem sucedido de polcas, não consegue compor réquiens, sonatas e sinfonias, que são gêneros que exigem outro grau de competência.

E não consigo ver como Machado o coloca como “sinal da vida coletiva” se ele é um dos poucos privilegiados que têm acesso a estes dois mundos (o popular e o erudito) e é, ao mesmo tempo, o principal responsável pela disseminação do gênero musical que tanto despreza. Ninguém mais pode fazer o que ele faz. Tanto é verdade que ele é um tipo de celebridade, grandemente admirado pela sua obra. As polcas, das quais ele passa o conto inteiro tentando escapar, saem — com incrível facilidade — dos seus próprios dedos e vão alimentar o mercado de venda de partituras.

Outro trecho:

Se somados a essa ilusão os interesses do mercado, que o conto satiriza com precisão hilariante, e que começavam a explorar, no fim do século 19, o futuroso filão da música popular urbana por meio do comércio de partituras, temos, mais refinada, embora ainda insuficiente, uma leitura que identifica no conto uma crítica pioneira da cultura de massas, e pela qual restaria ao artista o papel do peão impotente entre a alienação de uma arte que não descreve o meio em que atua e um mercado que instrumentaliza seus esforços vãos para os fins do lucro.

O viés Adorniano não podia faltar, claro (senão não é academia). Mas eu realmente não consigo ver essa crítica como um aspecto tão crucial do conto. Está lá, sim, mas Pestana não me parece tão impotente assim. Observe que ele fica dois anos sem compor. Volta por necessidade, claro. Mas o representante do mercado parece lhe oferecer condições tão confortáveis de trabalho. E, de novo, vejo sua submissão aos pedidos do editor como a única alternativa que restou a um músico que não tem talento para compor numa linguagem musical mais exigente.

Enfim, análises etnomusicológicas à parte, o conto é uma obra-prima. O que li nessa introdução me deixou curiosa, apesar de não fazer a mesma leitura da história.

E posso sugerir um livro muito bom que trata da música no Rio de Janeiro nesse período? Trata-se de “Music in Imperial Rio de Janeiro: European Culture in a Tropical Milieu” de Cristina Magaldi, que eu não sei se tem tradução para o português.

Termino esse comentário meu sobre o livro de Wisnik — que espero pedir que alguém me mande daí — com um trecho do conto. Que é de uma beleza única, marca desse brasileiro que eu adoro:

Poucos dias depois — uma clara e fresca manhã de maio de 1876 — eram seis horas, Pestana sentiu nos dedos um frêmito particular e conhecido. Ergueu-se devagarinho, para não acordar Maria, que tossira toda a noite, e agora dormia profundamente. Foi para a sala dos retratos, abriu o piano, e, o mais surdamente que pôde, extraiu uma polca. Fê-la publicar com um pseudônimo; nos dois meses seguintes compôs e publicou mais duas. Maria não soube nada; ia tossindo e morrendo, até que expirou, uma noite, nos braços do marido, apavorado e desesperado.

Era noite de Natal. A dor do Pestana teve um acréscimo, porque na vizinhança havia um baile, em que se tocaram várias de suas melhores polcas. Já o baile era duro de sofrer; as suas composições davam-lhe um ar de ironia e perversidade. Ele sentia a cadência dos passos, adivinhava os movimentos, porventura lúbricos, a que obrigava alguma daquelas composições: tudo isso ao pé do cadáver pálido, um molho de ossos, estendido na cama… Todas as horas da noite passaram assim, vagarosas ou rápidas, úmidas de lágrimas e de suor, de águas-da-colônia e de fg(213,’Labarraque,’)Labarraque, saltando sem parar, como ao som da polca de um grande Pestana invisível.

Enterrada a mulher, o viúvo teve uma única preocupação: deixar a música, depois de compor um Réquiem, que faria executar no primeiro aniversário da morte de Maria. Escolheria outro emprego, escrevente, carteiro, mascate, qualquer coisa que lhe fizesse esquecer a arte assassina e surda.

Começou a obra; empregou tudo, arrojo, paciência, meditação, e até os caprichos do acaso, como fizera outrora, imitando Mozart. Releu e estudou o Réquiem deste autor. Passaram-se semanas e meses. A obra, célere a princípio, afrouxou o andar. Pestana tinha altos e baixos. Ora achava-a incompleta, não lhe sentia a alma sacra, nem idéia, nem inspiração, nem método; ora elevava-se-lhe o coração e trabalhava com vigor. Oito meses, nove, dez, onze, e o Réquiem não estava concluído. Redobrou de esforços; esqueceu lições e amizades. Tinha refeito muitas vezes a obra; mas agora queria concluí-la, fosse como fosse. Quinze dias, oito, cinco… A aurora do aniversário veio achá-lo trabalhando.

Contentou-se da missa rezada e simples, para ele só. Não se pode dizer se todas as lágrimas que lhe vieram sorrateiramente aos olhos, foram do marido, ou se algumas eram do compositor. Certo é que nunca mais tornou ao Réquiem.





música dos séculos XIX e XX: algumas leituras

20 10 2008

Há coisa de dois anos, levei pau na prova de single-sheets* do curso “Música dos séculos XIX e XX” e por isso, o professor sugeriu que eu fizesse nova prova quando o curso fosse oferecido novamente.

O curso está sendo oferecido este trimestre e eu estou fazendo as leituras todas, me preparando para a prova que dessa vez inclui questões abertas. Então estou relendo os volumes 4 e 5 de “Oxford History of Western Music: Music from the Earliest Notations to the Sixteenth Century”, de Richard Taruskin.

É curioso reler uma obra tão densa como essa. Estou impressionada com a quantidade de coisas que eu simplesmente não me lembro de ter lido.

E é interessante ver como ele escolheu discorrer sobre assunto tão complexo. Já falei aqui que ele é um escritor fantástico. O que eu gosto mesmo nesses textos é o modo como ele fala da música, mais do que o assunto em si. Nem sempre estou interessada nos fatos, mas acho fascinante ver como ele discorre sobre a música, que aspectos escolhe descrever, como analisa a música, o que ele menciona da vida do compositor, quais fatos históricos cita.

Enfim, pra mim, estes dois volumes dizem muito sobre como escrever sobre música sem soar como um artigo da Wikipédia.

Também fazem parte da bibliografia, o livro “The Rest is Noise” de Alex Ross e o “Cambridge History of 20th-Century Music”, editado por Nicholas Cook. Também tem “Twentieth-Century Music” de Robert P.  Morgan e “Musical Composition in the Twentieth Century” de Arnold Whittall. Mas desses falo outra hora, se tiver tempo (o curso requer 200 páginas de leitura por semana e eu estou lendo bem devagar porque é muita coisa pra assimilar).

Vou ver se posto trechos de uma entrevista que eu achei, onde Taruskin fala desse projeto. Outra hora.

*Single-sheets é o seguinte: você tem, nesse caso, vinte folhas de partituras, que deve identificar, dizer quem escreveu e quando. É claro que, para a prova, eles tiram o título da composição e o nome do autor das fotocópias. Na verdade, eles podem muito bem escolher uma folha que não seja o início da peça. Se você não consegue identificar, tem que pelo menos fazer um educated guess e explicar por quê. No caso dessa prova, todas as partituras eram dos séculos XIX e XX.




we exist in different time signatures

16 10 2008

Eu não gosto de metáforas musicais. Acho fácil demais comparar emoções ou qualquer experiência humana com música porque música sempre nos toca. Além disso, música é aquela coisa aberta a todo tipo de interpretação.
Mas gostei dessa analogia de James Wood em “How Fiction Works”, que estou lendo e me encantando, onde ele sugere que a nossa percepção do mundo se dá em diferentes fórmulas de compasso. Veja se você concorda.

Flaubertian realism, like most fiction, is both lifelike and artificial. It is lifelike because detail really does not hit us, especially in big cities, in a tattoo of randomness. And we do exist in different time signatures. Suppose I am walking down a street. I am aware of many noises, much activity, a police siren, a building being demolished, the scrape of a shop door. Different faces and bodies stream past by me. And as I pass a café, I catch the eye of a woman, who is sitting alone. She looks at me, I at her. A moment of pointless, vaguely erotic urban connection, but the face reminds me of someone I once knew, a girl with just the same kind of dark hair, and sets a train of thought going. I walk on, but that particular face in the café glows in my memory, is held there, and is being temporally preserved, while around me noise and activities are not being similarly preserved—are entering and leaving my consciousness. The face, you could say, is playing at 4/4, while the rest of the city is humming along more quickly at 6/8.
The artifice lies in the selection of detail. In life, we can swivel our heads and eyes, but in fact we are like helpless cameras. We have a wide lens, and must take in whatever comes before us. Our memory selects for us, but not much like the way literary narrative selects. Our memories are aesthetically untalented.





uma visita ao sebo

16 07 2008

Passei a tarde de ontem no Sebo do Messias na Sé. E pra quem gosta de livros, o lugar é um paraíso. Tá certo que tinha um violinista tocando sem parar lá. E como música me distrai incrivelmente, saí de lá esgotada. Aliás, música ao vivo num sebo? Pra quê mesmo?

Uma coisa que eles certamente podiam fazer é colocar umas cadeiras lá. Tudo bem, admito que uso a Cultura descaradamente como biblioteca, mas sebo é diferente porque a gente sempre sai com um livrinho. É impossível ir num sebo bom como aquele e não sair com alguma coisa.

O que eu comprei? Bom, apenas coisas pra minha pesquisa sobre música e pentecostalismo em São Paulo. Mas como eu gosto do que estou estudando, fiquei felicíssima.

Eu defini que iria estudar o Brasil há bem pouco tempo – coisa de dois anos, a mesma época que decidi mudar de teoria pra etnomusicologia. Então, minhas leituras dos pensadores brasileiros estão todas defasadas. Algumas coisas li quando estava na faculdade de economia (que nunca terminei), mas não me lembro de quase nada. Por isso estou voltando aos clássicos.

De imediato, vou atacar os três principais: “Raízes do Brazil” de Sérgio Buarque de Holanda, “Formação do Brasil Contemporâneo” de Caio Prado Júnior e “Casa Grande & Senzala” de Gilberto Freyre.  

Agora, olha que legal: achei edições ótimas dos dois primeiros em excelente estado e bem mais em conta que as edições novas. O do Freyre vou comprar de uma amiga que comprou recentemente.

Estes livros até que são procurados – acho que estão na lista da bibliografia básica para o concurso de diplomatas do Instituto Rio Branco – então fiquei surpresa em encontrar estas edições (embora, fossem as únicas). Livro bom quando vende aos montes no Brasil é porque está listado em bibliografia de concurso.

Também tem gente que não gosta de livros usados de jeito nenhum, principalmente quem tem rinite. Compreensível. O problema é que se o assunto é Brasil, não há como não recorrer a sebos porque há livros excelentes que não são mais publicados.  

Andar pelos corredores de um sebo sentindo cheiro de livro velho, ficar com as mãos sujas de manuseá-los, passar horas torcendo o pescoço pra direita e pra esquerda pra ler as lombadas – que nunca estão do mesmo lado – lendo tudo em pé. . . E pra quê?

Pra encontrar um livro que pouca gente tem, oras. Este é o fascínio dos sebos. É como uma caça ao tesouro.

Meus outros tesouros, cavados no Sebo do Messias foram os livros “O Messianismo no Brasil e no Mundo” de Maria Isaura Pereira de Queiroz e “Bandeirantes e Pioneiros” de Vianna Moog, que pretendo devorar logo.

Agora com licença que eu vou ter uma conversa com o falecido Sérgio Buarque.

 





Mainardi e você

13 07 2008

Me enchi das coisas de escola e fui dar uma olhada na estante, cheia de livros, da minha anfitriã. Achei “A Tapas e Pontapés” do Diogo Mainardi. Abri pra folhear e acabei lendo ele todinho em algumas horas.

Eu tinha uma idéia errada sobre o projeto do homem. Seu saco de pancadas não é Lula; é o brasileiro. Gostei muito sim, apesar de pertencer ao saco.

Bom, não pertenço ao saco exatamente. Na verdade, o Brasil no qual ele desce o sarrafo é o dos (políticos) brasileiros ladrões, dos (governos) brasileiros incompetentes, do (presidente) brasileiro desonesto, mentiroso e deslumbrado com o poder, do (povão) brasileiro analfabeto, rude e sem cultura, da (literatura e cultura) brasileira aguada e pretensiosa.

É um retrato do Brasil. Feio, não por culpa do retratista – que, de fato, não quis dar nem uma maquiadinha no retratado –, mas porque o Brasil é feio por si só.

Mas, mesmo sendo brasileira, não me senti na linha de tiro. Não achei que era de mim que ele falava. “Para” mim, mas não “de” mim. E acho que esse livro é outro daqueles que mergulha na cabeça do brasileiro que mais abunda essa terra aqui (sim, porque de acordo com o que eu disse, há outros tipos de brasileiros). Pra ser lido junto com Freyre, DaMatta e Buarque de Holanda.

Por isso, não entendo o ódio com que suas crônicas são recebidas. Logicamente, só deveria ficar ofendido quem se identifica com o Brasil perdedor e desonesto que ele descreve – aqueles sujeitos que eu coloquei entre parênteses um parágrafo antes.

Ah, mas e o seu lado patriótico? Não se sente ofendido? Quando me perguntam isso, tenho vontade de discorrer sobre as coisas nada bonitas que penso sobre essa turma – a dos patriotas.  Além disso, meu lado patriótico sempre perdeu para o meu lado pragmático. E sempre perdeu feio.

O fato é que meu lado patriótico fica todo alvoroçado quando estou fora do Brasil. Mas com já um mês de São Paulo, ele minguou de vez.

Ah, e o seu senso de responsabilidade social? Esse eu perdi há oito anos. Tenho quase certeza de que deixei no avião, quando desci em Narita.

Recomendo o livro? Bom, depende. De qual Brasil você faz parte? Ninguém gosta de ser xingado não é? Principalmente quando você sabe que o que te falam é a verdade.





Dicta & Contradicta

10 07 2008

Estou lendo “Dicta & Contradicta”, uma revista que foi lançada agora em junho no Brasil.
Comprei o primeiro volume ontem e gostei do que li até agora (são 210 páginas). Tive que pedir em outras lojas da Cultura porque está se esgotando rápido.

Estou lendo aos poucos, saboreando os textos bem escritos (com colaboradores também de Portugal), entre as minhas leituras pra pesquisa e pro exame em setembro.

Trata-se de uma publicação sobre filosofia, literatura, arte, essas coisas. A idéia é lançar o segundo volume em seis meses, o que já mostra cuidado da parte dos editores.

Não sei quanto a vocês, mas me cansei de abrir uma revista desse tipo, publicada no Brasil, e ler de novo sobre Marx, sobre Cuba, sobre Guevara (estômago embrulhando…).
Foi um alívio não ver nada disso até agora.

Dê uma olhada no blog da revista.

Recomendo.





leia no trabalho

28 05 2008

Outra utilidade pro Powerpoint: disfarçar o que você lê (durante o trabalho).

A idéia é muito boa.

http://www.readatwork.com/





Machado de mau humor

2 02 2008

Algumas coisas nunca mudam…

Ocorreu-me compor umas certas regras para uso dos que freqüentam os bondes.
O desenvolvimento que tem tido entre nós este meio de locomoção, essencialmente democrático, exige que ele não seja deixado ao puro capricho dos passageiros. Não posso dar aqui mais do que alguns extratos do meu trabalho; basta saber que tem nada menos de setenta artigos. Vão apenas dez.

Art. I – Dos Encatarrados – Os encatarrados podem entrar nos bondes, com a condição de não tossirem mais de três vezes dentro de uma hora, e no caso de pigarro, quatro.
Quando a tosse for tão teimosa que não permita esta limitação, os encatarrados têm dois alvitres: ou irem a pé, que é bom exercício, ou meterem-se na cama. Também podem ir tossir para o diabo que os carregue.
Os encatarrados que estiverem nas extremidades dos bancos devem escarrar para o lado da rua, em vez de o fazerem no próprio bonde, salvo caso de aposta, preceito religioso ou maçônico, vocação etc., etc.

Art. II – Da Posição Das Pernas – As pernas devem trazer-se de modo que não constranjam os passageiros do mesmo banco. Não se proíbem formalmente as pernas abertas, mas com a condição de pagar os outros lugares, e fazê-los ocupar por meninas pobres ou viúvas desvalidas mediante uma pequena gratificação.

Art. III – Da Leitura Dos Jornais – Cada vez que um passageiro abrir a folha que estiver lendo, terá o cuidado de não roçar as ventas dos vizinhos, nem levar-lhes os chapéus; também não é bonito encostá-lo no passageiro da frente.

Art. IV – Dos Quebra-Queixos – É permitido o uso dos quebra-queixos em duas circunstâncias: a primeira quando não for ninguém no bonde, e a segunda ao descer.

Art. V – Dos Amoladores – Toda pessoa que sentir necessidade de contar os seus negócios íntimos, sem interesse para ninguém, deve primeiro indagar do passageiro escolhido para uma tal confidência, se ele é assaz cristão e resignado. No caso afirmativo, perguntar-lhe-á se prefere a narração ou uma descarga de ponta-pés; a pessoa deve imediatamente pespegá-los.
No caso, aliás extraordinário e quase absurdo, de que o passageiro prefira a narração, o proponente deve fazê-la minuciosamente, carregando muito nas circunstâncias mais triviais, repetindo os ditos, pisando e repisando as cousas, de modo que o paciente jure aos seus deuses não cair em outra.

Art. VI – Dos Perdigotos – Reserva-se o banco da frente para a emissão dos perdigotos, salvo as ocasiões em que a chuva obriga a mudar a posição do banco. Também podem emitir-se na plataforma de trás, indo o passageiro ao pé do condutor, e a cara voltada para a rua.

Art. VII – Das Conversas – Quando duas pessoas, sentadas a distância, quiserem dizer alguma cousa em voz alta, terão cuidado de não gastar mais de quinze ou vinte palavras, e, em todo o caso, sem alusões maliciosas, principalmente se houver senhoras.

Art. VIII – Das Pessoas Com Morrinha – As pessoas que tiverem morrinha podem participar dos bondes indiretamente: ficando na calçada, e vendo-os passar de um lado para outro. Será melhor que morem em rua por onde eles passem, porque então podem vê-los mesmo da janela.

Art. IX – Da Passagem Às Senhoras – Quando alguma senhora entrar, deve o passageiro da ponta levantar-se e dar passagem, não só porque é incômodo para ele ficar sentado, apertando as pernas, como porque é uma grande má criação.

Art. X – Do Pagamento – Quando o passageiro estiver ao pé de um conhecido, e, ao vir o condutor receber as passagens, notar que o conhecido procura o dinheiro com certa vagareza ou dificuldade, deve imediatamente pagar por ele: é evidente que, se ele quisesse pagar, teria tirado o dinheiro mais depressa.





realismo em ficção

29 01 2008

Uma explicação sobre o que é realismo em ficção. E porque não é o que a maioria pensa. Apareceu nessa resenha do livro “How fiction Works” de James Wood, ainda a ser lançado.

Wood cites American novelist Rick Moody, who says the realistic novel needs “a kick in the ass”, as “it’s politically and philosophically dubious and often dull”. This, argues Wood, is nonsense, and based on a misunderstanding of what realism actually is and what the novel’s relationship to it is. While novels may appear realistic, they are still novels – artifices, whose reality is that which the novelist chooses to present to us.

Great novelists, says Wood, such as Flaubert or Henry James or Saul Bellow, offer their readers a world in which “reality” is not a mirror of the “real” world but of their manufacture. Bad writers do not appreciate this, for “they assume that the world can be described”.

“In America,” Wood adds, “the battle lines are more fiercely drawn up than in Europe because of the tendency on the realist side to be somewhat anti-intellectual and masculinist – that whole sort of post-Hemingway line. A writer I admire, like Richard Ford, say, would probably be thought of by people like writer and academic David Foster Wallace as prehistoric, unintellectual. I don’t think that’s fair. But there has been a tendency in American writing schools to enforce a slightly unthinking realism.





Begley, Nabokov, and the break in one’s own destiny

13 12 2007

Louis Begley, no livro The Genius of Language: Fifteen writers reflect on their mother tongues):

Even though I am told that my writing does not show signs of rigor mortis, it is a fact that I write slowly and laboriously, pausing after every word I set down. I change it countless times and repeat the process with each sentence and paragraph before I can move forward. The vision of Trollope composing the Barchester novels in a railroad car, traveling desk balanced on his knees, with hardly an erasure or addition needed before the manuscript went off to the publisher, fills me with admiration, envy, and dull despair. I too can perform on the high wire when I write a legal text or an essay; writing fiction I need to keep my feet on the ground. Perfectionism and perennial dissatisfaction with everything I do are not alone to blame: it seems to me that when I write in English I lack normal spontaneity, let alone the unbeatable self-assurance a writer needs to soar or to be outrageous. I know that I do manage from time to time to be outrageous in my fiction, but the stress falls on the verb “manage.” Nothing about those effects is instant. The truth is that even today, after an immersion of more than fifty-five years in the English language, I am never completely confident that I have gotten right whatever it is that I write down, certainly not on the first try. Knowing objectively that often—perhaps most often—in fact I do, is not a consolation. In that respect only, I am not unlike my great countryman, Joseph Conrad. But Conrad had more of an excuse: he began to learn English only at the age of twenty-one; he was thirty-eight when his first novel, Almayer’s Folly, was published, and he had spent most of the intervening years on the high seas. Vladimir Nabokov’s command of the English language is a different case altogether. English was in effect Nabokov’s first language: he learned to read it before he could read Russian. Becoming thoroughly proficient in a “civilized” tongue, usually the French, and leaving the vernacular for latter, to be absorbed as a part of growing up, was usual in the nineteenth century among Slavic upper-class families. There was a series of English and French governesses who took care of the Nabokov children, and it wasn’t until Vladimir was seven that his father, alarmed by his sons’ backwardness in their native language, engaged the schoolmaster from the village adjoining the family estate to teach them to read and write in Russian.To go back to the torment I experienced revising the manuscript of my most recent novel, its immediate cause was the number of times my editor was in essence questioning my diction, the correctedness of the way I expressed myself in English. It didn’t matter that he wasn’t always right. What hurt was the contrast between his instinctive grasp of how one would normally say whatever it was that I wanted to express and my doubts: my need to grope to find the way, to test each sentence by reading it aloud. He had kept his birthright—the ability to use his mother tongue in his calling—and I had lost mine.

(…)

The Polish language has been a source of undiluted joy for me, and it pains me to make an admission that may make me seem unfaithful to my first love. But the plain truth is that I consider myself also supremely lucky to be an American novelist, using a language of incomparable beauty and access to readers, a language that for all the difficulties I have described is totally my own. In this respect as well, my case is very different from Nabokov’s, as he described it in an afterword to Lolita:

My private tragedy, which cannot, and indeed should not, be anybody’s concern, is that I had to abandon my natural idiom, my untrammeled, rich and infinitely docile Russian tongue for a second-rate brand of English, devoid of any of those apparatuses—the baffling mirror, the black velvet backdrop, the implied associations and traditions—which the native illusionist, frac-tails, can magically use to transcend the heritage in his own way.

Tragedy, surely, but one that was embedded in triumph. (…) I follow Nabokov’s advice, and take the tragedy seriously only because Nabokov’s intimate wound was surely very real, as is the wound inflicted by every exile, whatever its circumstances and aftermath. The wound is one that never heals, even if one can say with Nabokov, as I do, quite heartlessly: “The break in my own destiny affords me in retrospect a syncopal kick that I would not have missed for worlds.”